10.4.19

Amaciar o tempo


Nils Frahm, “A Walking Embrace”, in https://www.youtube.com/watch?v=DA5AocN0ons
É melhor amaciar o tempo. Deixar a voracidade perder fulgor, aquela que arranca o suor das veias. O melhor remédio: uma distração, por exemplo. Desviar o pensamento. Desviá-lo da inquietação do momento. E voltar a amaciar o tempo, reduzir as suas arestas para que ele deixe de ser cicatriz. 
As convulsões interiores pedem um refluxo. Um poema em jeito de grinalda que dissolva a amargura. Terá de ser um poema capaz, categoricamente capaz. A convocar toda a sátira por dentro. Pois a sátira tem o condão de diluir o sangue fervente, de o aplacar dentro das veias incandescentes. O sótão da memória é o manancial necessário. Pode-se convocar O’Neill, Césariny, Adília, Pimenta. Ou o recentemente conhecido Jorge Sousa Braga. Como auxiliar de memória e rastilho da redenção, pode-se recuperar qualquer outra forma de humor, Monty Python, por exemplo. 
Ao mesmo tempo, e como serviçal da função em curso, podem entrar, em contramaré, pedaços risíveis da memória coletiva (ou apenas da memória individual). Frases e episódios de figuras públicas, que por serem tão grotescas se tornam risíveis. A política costuma ser um viveiro. Ou também se podem convocar as angústias do momento, as que enxameiam as notícias dos jornais ao ponto de quase os transfigurarem em divãs de psiquiatria ou em fartas páginas de um obituário coletivo. Não serão tais perplexidades se não instrumento para contornar a inquietação que se soergue em pleno palco. Às vezes, são necessários expedientes para ultrapassar as fragilidades. Formas de enganar essas fragilidades, fazendo-lhes uma finta digna de um artista circense. E intuir as muito piores desgraças que grassam à volta.
Entretanto, o tempo vai amaciando. A sua ebulição perdeu o epicentro. Os segundos já não são o excruciante lugar onde os contrafortes interiores foram atingidos por um tumulto. No parapeito da lucidez, inventa-se o modo de tatuar as cicatrizes pelo desejo de um porvir desapoquentado. E o tempo vai amaciando, os segundos já não cavalgando uns em cima dos outros numa correria caótica, quase apoplética. 
Os legados servem para depurar as contrariedades. Pois não há melhor memória do futuro do que um chão fértil, as flores garridas que se sobrepõem ao sorriso, as palavras docemente entoadas, o estribilho preferido como mnemónica do saber, de um saber que não aviva a cal propositadamente vertida sobre as feridas – antes, aprendeu a mitigar os efeitos da cal. Porque agora é empreitada fácil, a cicatrização das feridas. 

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