Ivy, “I Miss Myself”, in https://www.youtube.com/watch?v=ro3wYU3ewIc
No centro do palco, uma mesa estilizada acolhe o pivot que lê o noticiário. A mesa está cercada pelas cadeiras onde o público se senta. Uma vidraça separa o público do ator que encarna o jornalista. Uma panóplia de ecrãs nas costas da audiência confere realismo à peça. Por esses ecrãs desfila uma vertigem de imagens que não são atuais: as imagens constituem um repositório da história do século XX e dos alvores do século XXI. As imagens passam sem som. O público não as vê. As únicas que estão à frente dos seus olhos situam-se longe, na outra extremidade do palco, o que impossibilita a cuidada depuração. E o público é convidado a dirigir a atenção para o ator que faz as vezes de jornalista. As imagens que passam nos ecrãs são apenas cenografia. Talvez dispensáveis, como muitos dos acontecimentos que estão na sua origem.
O ator lê notícias avulsas. Entre duas notícias, a reportagem exigível para traduzir o noticiado em imagens. Essas imagens estão fora da peça. O público concentra-se no desempenho do ator-jornalista, que descontrai de cada vez que é simulada a entrada de imagem exterior na emissão. Os seus trejeitos, o copo de água que o dessedenta, o lenço trazido pela assistente de produção que ajuda a limpar uma ligeira escorrência de suor, uma tossiqueira que ainda bem que não aconteceu em direto, comunicações com a régie, apenas se ouvindo metade do diálogo (as entradas que têm a viva voz do ator-jornalista).
O ator-jornalista, enjaulado no seu micro cenário, não se apercebe da multidão que o cerca. A vidraça tem sentido único. Só os espectadores conseguem ver o pivot. Este não desconfia do escrutínio em direto. Está à vontade. Não se inibe de descomprimir com abundante uso de vernáculo – as restantes pessoas em cena estão num patamar inferior na hierarquia e, assim como assim, os pivots que leem notícias em estações de televisão são as superestrelas do jornalismo, têm privilégios que mais ninguém tem. O público testemunha os comentários do jornalista enquanto as imagens que não existem vão para o ar no noticiário que apenas é visto naquele palco. O desdém pelo político A, a indiferença em relação ao poderoso ministro das finanças, os comentários de teor sexista quando uma atriz de Hollywood aparece a denunciar um ator pelo assédio sexual, o respeito sepulcral quando o primeiro-ministro aparece em cena (nas quatro vezes que aparece em cena, pois foi dia de um desmentido, um anúncio solene de promessa eleitoral – ou, dir-se-ia, um anúncio de solene promessa eleitoral – e duas inaugurações), a comiseração pelo político B, a admiração por um desportista emergente, a observação boçal sobre os dotes corporais de uma cantora mestiça.
O público que enjaula o ator-jornalista não tem como pôr-lhe freio. Apetecer-lhe-ia dirigir interrogações, corrigir observações impertinentes (não reprimindo um certo gosto soez pela censura, que pouco se aprende com a História recente), calá-lo entre as notícias, sem perceber se a logorreia entre duas notícias é apenas um expediente para aligeirar do estado nervoso que se abate sobre o jornalista, ou se é caso de insolência. Não é possível discernir as fronteiras do fingimento. Não é possível a intervenção quando dão conta da parcialidade do pivot. A mesma notícia lida pelo mesmo pivot, no segundo ensaio fazendo de conta tratar-se de outra pessoa com outras preferências, soa diferente. Um rosto sorumbático contra um rosto que não reprime um esgar que contém desdém. A voz colocada sem modulações contra a voz que se arrasta no limbo do cinismo. A mera leitura da notícia contra o mesmo acrescentado de um irresistível comentário pessoal (irresistível, na perspetiva do pivot). O galopar de notícias cirurgicamente escaladas para embelezar a imagem do governo em funções, sem direito a agravo ou a contraditório – até que um espectador, não se contendo, dispara bem alto: “hoje a oposição não trabalhou?”, vendo-se mais tarde a saber que aquele espectador figura na ficha técnica da peça (é um ator-espectador).
À saída do teatro, pede-se aos espectadores um endereço de correio eletrónico (e a autorização exigível pela lei de proteção de dados pessoais), informando-os que vão receber um questionário sobre o desempenho do pivot. Para convencer os espectadores a contribuírem com a sua análise, os encenadores prometem que as respostas serão levadas em consideração. Informam que a peça é dinâmica: o texto é reescrito no final de cada semana, depois de apurados os inquéritos devolvidos pelos espectadores anteriores. Uma peça dinâmica. Que é refeita sob a batuta do sentir dos espectadores.
O pivot é muito menos importante do que o seu narcisismo manda dizer.
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