2.4.19

Nem todos os gatos são pardos (com noite ou sem ela)


Nick Cave and the Bad Seeds, “Distant Sky” (live in Copenhagen), in https://www.youtube.com/watch?v=Rk5gRVvf4Yc
1.
A aurora enxagua o suor dos pesadelos. As mãos ainda trémulas perguntam se a manhã demora. O corpo é impelido, aos repelões, para um duche rápido, negligente. Ainda consegue ouvir os latidos dos cães vadios que por ali andam.
2.
As árvores estão frondosas. E não é primavera. Nem está um dia soalheiro. As árvores é que têm este predicado. Podia estar um dia chuvoso, sorumbático, que as árvores conseguiam irradiar um feixe de resplandecência inigualável. Não percebe como há pessoas que decaem na depressão.
3.
Funeral. As pessoas saem vagarosamente do cemitério. Estão cabisbaixas. Muitas, escondidas nas lentes baças dos óculos de sol. Ao menos sabem que ainda estão vivas. Compensa sabê-lo. É uma vantagem competitiva sobre o homenageado.
4.
À mesa do bar irlandês, entre o ruído exacerbado de uma “banda” que replica os hits do rock’n’rollpopularucho e os gritos estridentes de um punhado de britspara lá de alcoolizados, escreve umas palavras avulsas no cartão retangular que serve de base para o copo: “Os bravos são dementes que se esgueiram entre a melancolia./Sabem sentir o odor putrefato dos vultos cimeiros/e lutam contra eles.
5.
Havia um banco no jardim em ruínas. O cimento dos alicerces deixava à mostra o ferro oxidado. Ninguém se sentava neste banco. As pessoas não têm medo da lucidez quando a loucura lhes bate à porta. (Com umas exceções imoderadas.)
6.
A meio da tarde, parecia que o tempo estava parado. Já começara o dia há muito tempo e ainda falta muito tempo para o fim do expediente. Era uma maneira distorcida de o dizer: só faltavam duas horas. Mas eram as horas mais penosas.
7.
Vinha do médico e pareceu-lhe ver um eremita do outro lado da rua. A vista já não é o que era – tinha mesmo de ir ao oftalmologista e convencer-se a usar óculos. O que faria um eremita no centro da cidade em ebulição?
8.
Não são todos pardacentos, os gatos. O adágio manda dizer (erradamente) que à noite todos assim parecem. Só que à noite há sombras e também há muita e artificial luz. Um gato, mesmo que seja pardo, não deixa de ser visto se tiver os holofotes sobre si. É como as pessoas. Umas escondem-se, fazem-se propositadamente reféns do anonimato. E não são pardacentas. Outras, repositórios da nulidade, afadigam-se por serem claustros onde todos os olhos se deitam.
9.
O café está povoado de moscas. Deve ser do verão a destempo. As moscas desviam a atenção. Hoje gosta de moscas.
10.
Os lençóis ainda guardam vestígios do suor vertido por causa do pesadelo da noite anterior. Não importa. Desconfia que vai cair na vertigem de mais pesadelos. Assim como assim, o médico já não precisa de o importunar com o imperativo ginásio. 

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