19.4.19

Coisas findas (short stories #111)


Nils Frahm, “Sunson”, in https://www.youtube.com/watch?v=KsRTv3wrpQ0
          Ó perplexidade consentida, quando se dá conta que as coisas findas perdem validade. Não é ao contrário, como sentenciam os patriarcas da doutrina dominante: dir-se-ia, as coisas findas começam a sua validade no dia em que são dadas como terminadas. Ele não entendia o preceituado. Desinteressava-se das coisas quando as dava como findas. Tinha consciência do efémero, de como o efémero é um poderoso véu que deixa a nu o contrabando que se faz passar por matéria original. E nem que se tratasse daquelas empreitadas demoradas, nas quais nós, como seu empreiteiro mais interessado, deitamos o melhor dos nossos esforços, nem assim conseguia prevenir o sabor a vazio depois de finda a empreitada. Alguém sugeriu que mais importante do que dar por finda a obra é o processo que leva a esse estado terminal. De resto, esta expressão – estado terminal – não era por acaso. Fazia lembrar o estado senescente dos que, tomados por uma doença, caminhavam para a decadência sem remédio. Por mais que a coisa finda pareça soberba, ela perde a sua utilidade mesmo que seja convencionada a sua utilidade depois de dada como finda. Nessa altura, fica como legado do seu fautor; interessa apenas à memória e, nos casos em que um patológico narcisismo lobrigue, para o tremendo eu do empreiteiro. A coisa em si perde a utilidade que resultava num processo interno exclusivo do autor: durante a conceção da coisa finda, ao longo do processo possivelmente entrecortado por sobressaltos e hesitações, o autor da coisa a caminho de ficar finda era o seu único intérprete. Ninguém, por fora do processo, podia para ele contribuir. (A não ser que se considere – e é possível fazê-lo – que as pessoas que produzem uma influência no autor traduzem, através dessa influência, que tanto pode ser positiva como negativa, um contributo para o processo.) Depois de finda, a coisa perece na sua finitude. Deixa de ser património do seu autor. A entrega da coisa à comunidade esvazia-a de conteúdo, na perspetiva de quem a criou. Deixa de ser dele. Mesmo que venha ornamentada com placas a preceito, em solene inauguração com a devida bênção bispal (como soe ser em Estado eminentemente laico...), figurando o nome do autor como o autor da coisa. Mas ninguém precisava de saber.

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