1.4.19

A autobiografia que só falava de outras pessoas


Sugarcubes, “Cold Sweat”, in https://www.youtube.com/watch?v=y8XVHnNaJOo
O projeto de uma vida inteira, agora que tinha a impressão que a mesma entrava na etapa final. 
(Não sabia ao certo por que era contaminado por esta impressão. Estava bem de saúde. Não se podia dizer que tinha entrado na terceira idade. Se fosse comparar-se com os da sua faixa etária, os outros é que tinham motivos de inveja. Nunca fiando: ainda há dias soube, pelas notícias, de uma figura pública que pereceu de repente. Só viveu quarenta e poucos anos.)
O projeto de uma vida inteira: tempo de calibrar o olhar pelo espelho retrovisor, vertendo em páginas o espelho de uma retrospetiva. Não tinha a certeza da utilidade de uma autobiografia – e muito menos, do interesse para os outros, os que pudessem ser apanhados em falso na sua leitura. Era outro algo que não conseguia explicar: esta pulsão para a autobiografia. Era como se receasse que o tempo podia escassear se adiasse a empreitada. Como se fosse urgente deixar vertidas em palavras, para memória futura, o leilão das memórias de uma vida inteira. Não entendia que valor excecional podia ter a sua vida para merecer uma autobiografia. Talvez fosse um ensimesmar justificado pela impressão de que acabava de entrar na etapa derradeira da sua vida.
Por dias a fio, a manhã, a tarde e parte da noite foram ocupadas com a interiorização da memória e o que dela baixava à escrita. Até nos preparativos para o sono e nos próprios sonhos as exigências da autobiografia estavam presentes. Coligiu páginas a eito. Às vezes, interrompia a escrita e revia os capítulos prontos. Os capítulos não estavam prontos, reconhecia: as páginas enchiam-se de anotações à margem, frases inteiras eliminadas, outras reescritas, muitos pontos de interrogação. Só depois avançava para capítulos em espera. E voltava a retroceder a capítulos anteriores, quando não tinha a certeza se estava a ser atraiçoado pela memória quando alguns episódios narrados vagueavam na indistinta bruma que ocupava as recordações. 
Já era assinalável a resma de papel com o esboço da autobiografia. Releu-a a eito, sem encher as páginas com mais anotações à margem, frases inteiras eliminadas, outras reescritas e muitos pontos de interrogação. Queria uma fotografia de conjunto da autobiografia. Para ajuizar se era uma autobiografia ou uma interpretação pessoal da sua autobiografia. Muitas vezes esbarrava neste dilema. O fino fio da memória não era o terreno fértil para a revisitação de episódios acontecidos. Ficava com dúvidas quase existenciais, sem saber se as coisas tinham acontecido como as recordava, ou se havia uma dimensão alternativa que escondia os factos como eles tinham sido registados no livro autêntico onde a História foi selada.
O que mais o inquietou é que a autobiografia só falava de outras pessoas. Seria uma falsa autobiografia? Levou uma noite inteira a pensar na interrogação. Afinal, não era motivo de inquietação. Sempre fora modesto e nunca quisera trazer a sua vida pela trela dos holofotes. O protagonismo era sempre dos outros. Uma autobiografia também pode ser escrita na geografia dos outros, sem deixar de ser uma autobiografia. 
O que uma pessoa é também passa pelos outros que passaram pela sua vida. 

Sem comentários: