22.4.19

A baleia pródiga (ensaio de conto infantil)


Beck, “Saw Lightning” in https://www.youtube.com/watch?v=NXrlWw3yhW4
Não se cansava, a baleia pródiga. Os marinheiros de vários mares já a conheciam e a lenda passava de boca em boca, de porto em porto, quando os marinheiros desembarcavam e conviviam nos bares por perto. Não se cansava, a baleia, pois era vista em mares diferentes com pouco tempo de diferença. Ainda se pensava que eram baleias parecidas, ou, talvez, baleias gémeas sulcando mares diferentes. Cientistas intrigados com os rumores puseram a ciência ao serviço da curiosidade geral: era a mesma baleia que andava por todos os mares. Já não havia dúvidas. O mito estava decretado.
Havia alturas em que a baleia acompanhava de perto a navegação de um navio. Parecia que o escolhia a dedo. Era sempre o navio que ia entrar em águas tempestuosas. Parecia um salvo-conduto: o navio entrava pela tempestade e, por maior que fosse a tempestade, passava como se nada tivesse acontecido. Sem danos, sem marinheiros enjoados, sem mobiliário atirado ao chão, sem motores sobreaquecidos por ser necessário investir contra os ventos iracundos, sem ser preciso deitar borda fora alqueires de mar acomodado no convés. Entre os marinheiros fortaleceu-se o mito: a baleia sabia que navios abençoar. Era como se intercedesse junto dos deuses que congeminam as tempestades e uma aberta de relativa bonança fosse desenhada à medida que o navio abençoado fosse atravessando as águas tumultuosas. 
Às vezes, os marinheiros conseguiam convencer o comandante a parar o navio por uns minutos. Queriam olhar a baleia nos olhos. A baleia fundeava a poucos metros do navio e ficava, sem medo, olhos nos olhos. Às tantas, comunicava com a tripulação através de um esguicho sonoro. O comandante dava ordem para o navio zarpar. Os marinheiros já sabiam que vinha tempestade. Não precisavam do acompanhamento da baleia para o saberem, porque os instrumentos sofisticados avisam o navio quando o tempo vai piorar. Com a lenda a correr de boca em boca, a visita da baleia era garantia de relativa bonança no meio de uma tempestade.
Um dia, a baleia foi parar ao oceano pacífico. Fugiu das águas quentes, das zonas meridionais. Rumou a norte. Desta vez, era uma embarcação que seguia a baleia. Obedecendo à sua bondosa natureza, a baleia não se importunou com a presença da embarcação. Não sabendo nada sobre os instintos malévolos dos humanos, não soube decifrar a pose agressiva da embarcação. Não sabia o que era um baleeiro. O que se seguiu não foi bonito de narrar. Naquele lugar ermo, sem terra por vista em centenas e centenas de milhas náuticas, o mar perdeu o azul profundo e ficou tingido de vermelho. De um vermelho vivo. Houvera carnificina. A baleia pródiga aprendera, às custas da sua ingenuidade, o que era a maldade humana. Parte do vermelho que tingia o mar viera do seu sangue. A parte maior era dos pescadores que encontraram sepultura entre os destroços do baleeiro e as profundezas do mar.
Naquele dia, a baleia desaprendeu os bons modos.

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