9.4.19

Jogar no escuro (short stories #107)


Cavalheiro com Xana, “Ninguém Me Avisou”, in https://www.youtube.com/watch?v=9c-3F-k4pZw
          Ninguém me contou que há tanta maldade a mestiçar-se com o que à nossa volta se move. Ninguém me disse que podemos ser apenas foliões sem tergiversar no teatro das seriedades. Ninguém me pôs de aviso contra as idolatrias mesquinhas, a devassa da ingratidão, as marés tempestuosas, as palavras desmentidas, as palavras que valem o contrário de quando são ditas. Ninguém me contou que há fingimentos em cascata e que já não é possível discernir quando o fingimento se substituiu à porosidade da pele gasta. Ninguém me disse para saber cair como os gatos. Ninguém me avisou das contas intrujadas dos astutos que só esperam pela primeira oportunidade de se passarem por impostores disfarçados de sedutores. Ninguém me contou que as religiões não sabem terminar com as comezinhas coisas que compõem a imperfeição do mundo. Ninguém me disse que as rodas em que nos movemos não são à prova de sobressalto. Ninguém me pôs de aviso para a noite medonha e de como os pesadelos se aproveitam da penumbra para adejarem vultos que esbracejam ameaças tumultuosas. Ninguém me contou que as estações medram nos apeadeiros próprios que foram por outros escolhidos no calendário. Ninguém me disse que a fome de poder dá de comer a tanta gente. Ninguém me avisou contra os tonitruantes mercadores nem da sua mercadoria contrafeita. Ninguém me contou que o campo de flores em que arrastamos os pés é uma ilusão. Ninguém me disse que éramos capazes de mentir aos desfiladeiros. Ninguém me pôs de aviso que não é possível andar em cima da água. Ninguém me contou que o hedonismo não é reprovável coisa, como ensinam os manuais dos costumes considerados. Ninguém me disse para ser honesto. (Talvez estivessem experimentados nos estertores que se abatem sobre quem considera a honestidade.) Ninguém me avisou para trazer armadura a preceito contra as pessoas outras. E, contudo, ajuízo o tirocínio – forçado, a expensas da minha algibeira de emoções – como o preço necessário de ser alguém que pertence a este mundo. Não precisei que alguém mo dissesse. Há matérias que só podemos tê-las satélites de nós se deixarmos a autoaprendizagem a combinar com o tempo incaracterístico.

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