5.4.19

O homem que dizia adeus aos comboios (short stories #106)


Sofa Surfers, “Sofa Rockers” (Richard Dorfmeister Remix), in https://www.youtube.com/watch?v=HAGZ3m_9N_8
          Dentro dos velozes comboios era difícil apreciar o homem que estava a todo o tempo (pelo menos, de cada vez que passava um comboio) a acenar para quem o via dentro do comboio. Os comboios vão sempre apressados e a paisagem escorre como um borrão indistinto. Os passageiros habituais, por serem habituais, não prestam atenção ao que se passa fora do comboio. Ora leem, ora conversam com os passageiros outros que também são assíduos, ora dormem. Era um ou outro passageiro não assíduo que, com olho de lince, anotava a presença de um homem pálido, inerte, em constante adeus. Ficavam perplexos, alguns dos efémeros passageiros: temiam que aquele adeus fosse um presságio e que alguma coisa de mal acontecesse – ao comboio, ou que a desfortuna apenas acossasse o passageiro que desse conta do homem em constante acenar em forma de adeus. Outros, menos dados às coisas angustiantes da vida, sorriam. Sorriam porque sentiam conforto ao verem um homem tomar parte do seu tempo para emprestar um pouco de simpatia ao comboio. E como o homem era sempre visto por todos os comboios apressados, dizia-se que sabia de cor os horários dos mesmos. Um dia, por causa de uma avaria na catenária, os comboios circulavam mais devagar naquele segmento da linha ferroviária. Os passageiros frequentes continuavam entretidos nos seus rotineiros afazeres (a leitura, a conversa, o sono em débito), como se com os afazeres rotineiros conseguissem triunfar sobre a rotina da viagem. Um ou outro passageiro efémero não ficaram indiferentes à esfíngica personagem que acenava mecanicamente na direção do comboio. Não parecia uma figura de carne e osso. Se fosse numa rua movimentada da cidade, onde os transeuntes que mais se acotovelam são turistas, compreendia-se: os homens-estátua procuram um magro pecúlio junto das pessoas mais sensíveis (os turistas, quando estão em turismo). Não era o caso. Aquele lugar era ermo, com campos e campos à volta, sem casas nas imediações. Os passageiros efémeros com dotes de observador tiraram a pinta do homem que acenava para dentro dos comboios: era um espantalho; um espantalho tão perfeito que, à velocidade voraz dos comboios, se podia jurar ser gente de carne e osso.

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