11.4.19

O homem que não gostava de partituras (short stories #108)


The Art of Noise, “Close to the Edit”, in https://www.youtube.com/watch?v=-sFK0-lcjGU
          Estranhava os estranhos, como quem se sente sem chão numa terra desconhecida. Fosse onde fosse. A começar pela terra a que se convencionaria chamar “casa”, ou “terra-mãe”, ou o referente de “naturalidade”. O rosto não escondia o esforço que o consumia por dentro, no ensaio por se manter à tona dentro das convenções que exigem um mínimo de semelhança com os semelhantes. O mal era dele – e também não o escondia. Desde pequeno. Não lhe dessem partituras que fossem roteiros obrigatórios. Não lhe dessem mapas com instruções precisas, passo a passo, dele fazendo uma simples marioneta orquestrada por outrem. Não lhe dessem manuais de instruções. Ou comandos, escritos ou verbais. Nunca quis nada disso. Por pressentir que comprometia a liberdade. Não condescendia com os que ousassem apresentar-lhe uma partitura, um mapa, um manual de instruções, comandos escritos ou verbais. Não fingia aceitação. A recusa era terminante. Em maus modos, para cavar a confrontação, se preciso fosse. Não transigia com estes atos, deliberados ou não, que fossem por ele vistos como uma hipoteca da alma. Nem com as suas próprias coisas tolerava a desarte da organização metódica. Não sabia o que era ser metódico. Pelas experiências dos outros que tomara conhecimento, os planos são uma mortificação porque agrilhoam as pessoas a um plano. Com as suas baias delimitadas, das quais não podem sair. As baias, elas próprias, produto das algemas que os próprios se autoimpõem. Não queria tamanha corrupção da alma. Tanto fazia que as partituras, fosse qual fosse a forma que assumissem, fossem autoimpostas ou produto da vontade exterior. Preferia a arte da improvisação, que tinha como contraste do método (por isso tido como desarte, autêntica tragédia da espécie pelas amarras que interioriza). Para tudo arranjava modos de improvisar. Admitia que nem sempre o resultado era o esperado. A improvisação debate-se com uma miríade de incertezas que se desmultiplicam em variáveis aleatórias. Tudo se jogava, portanto, contra a improvisação. Mas sossegava-se: por maioria de razão, a miríade de incertezas desmultiplicada em variáveis aleatórias não era acautelada por nenhum plano, por mais bem congeminado que fosse. 

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