26.4.19

Reduto


The Breeders, “Wait in the Car” (Live at Later with Jools), in https://www.youtube.com/watch?v=iuIQmZmf5zg
As veias viscerais latejam nos contrafortes da ousadia. Não tenho mão no coração. Parece que quer sair do peito, ir não sei para onde. Nem a chuva persistente serviria para temperar o fogo que consome as veias. Agora sei o sentido de um labirinto. Sei que são os caminhos entrelaçados uns nos outros, um emaranhado impossível, cheio de atalhos, que abraseia a lucidez. Mas para que se quer a lucidez? Não é da placidez absoluta que o corpo precisa. Ele tem de vir para a rua, soltar-se da alma, e correr numa errância irredutível. O corpo precisa de se libertar das amarras da alma – ouvia de uma voz sem rosto, teimosamente residente no pensamento; exige que a alma o veja de fora, por fora do corpo, para depois o ensinar a compreender-se a si mesmo.
As veias viscerais também ganham vida própria. Vão de latitude em latitude, não se sabe se à espera de recompensa. O dicionário perdeu a conta às vezes que os dedos o folhearam em demanda do significado de “virtude”. O esquecimento acabava por se sobrepor à etimologia. Não sabia se era do corpo ou da alma o refrigério que acautelava os caminhos recomendáveis, aqueles que sobejavam da decifração da palavra “virtude”. À noite, vultos temerários em forma de pesadelo entravam no sono, açambarcavam-no no santuário das coisas reprováveis. Acordava sobressaltado, as veias ferventes em diálogo tempestuoso com o sangue em ebulição. Ouvia um ruído longínquo, vagaroso, a arrastar-se pelas paredes das condutas. A parede do quarto parecia encolhida sob o efeito da penumbra, com medo dos pesadelos de que era forasteira. A noite mal começara e o sono era uma encomenda perdida.
A meio do nada, retomou o corpo emancipado em frenética correria. O chão passava como se ainda fosse mais veloz e nos ouvidos sobrava o percutir de cavalos desembestados. Não eram as vertigens que saberiam locupletar o ensaio que se congeminava. Algures, a alma – uma alma, que deslocada do corpo perde o paradeiro – seguia as elucubrações do corpo portanto desalmado. Um sal túrgido irradiava da luz que antecipava o entardecer. Um sal que acamava na pele suada, congraçando as cicatrizes. No fio do horizonte, havia estrofes que se sucediam numa cadência incerta. Não retinha as estrofes, que a alma estava em paradeiro desconhecido.
Ao corpo desalmado não ocorreu o medo de a alma encontrar paradeiro novo. Era dos preceitos estudados: a alma só pertence ao corpo que a hospeda. Não adianta inventariar vontades quiméricas ou o peso dos poetas para deitar mão a um preceito desconhecido. Por estranho que parecesse, o corpo não sentia falta da alma. Não se podia dizer que o contrário estivesse a ditar termos para a ata dos acontecimentos diários. A alma sentia a febre que tomava conta das veias todavia não iracundas do corpo extasiado. Estava fora dele, mas sentia as duas dores.
Os dois, corpo e alma, encontraram o seu reduto quando coincidiram no ocaso do dia.

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