27.5.19

Lágrimas lilases (short stories #118)


Dandy Warhols, “Shakin’”, in https://www.youtube.com/watch?v=R-5UxSj1T6I
          Ainda vais a tempo. A cortina que desce sobre o dia é o presságio de um encantamento. Há uma litania silenciosa que percorre as avenidas desertas, como se as estivesse a atapetar com um módico de felicidade. Vais a tempo: da tua quitação. Contempla o diadema da fala em todas as suas bissetrizes. Verbos no lugar certo. Substantivos sopesados. Adjetivos sem abundância. Compõe com os teus dedos os cabelos que sobem à maré. Atravessa o Rubicão que houver para atravessar, sem medo de entroncamentos. Quem pode dizer que nunca se desafiou no lúgubre lugar de uma interior peregrinação? Não estranhes que um rio de lágrimas inunde o olhar. E que ele se embacie. E não estranhes as coisas que podes considerar estranhas quando com elas tens aprendiz trato. Tu sabes o que é ser cosmopolita; alarga o conceito, deixa-o saltar as fronteiras da geografia e da identidade: aplica-o à aprendizagem das coisas desconhecidas. Saberás que esse desassombro enxuga as lágrimas que houverem sido vertidas. Ficarão lilases, depois de enxutas. Ficarás entregue a interrogações sobre o porquê de se terem transformado num borrão lilás as lágrimas que destinaste à sequidão. Não interrompas o que te pede o palco principal. Deixa essas interrogações para memória futura. Sem que a distração te distraia, alcança o verossímil método heurístico. Colhe as pétalas que se desprendem das flores demandadas. Dispõe-nas ao acaso no parapeito da janela sobranceira ao mar. E espera que o vento as leve: serão as pétalas a perfumar o vento insubmisso, tornando-o semelhante à madrigálica essência que se esconde na tua mais profunda medula. Das lágrimas lilases ficará apenas uma breve memória, um leve sabor na boca saciada. A quietude que aplana o chão por onde segues é o tempero que te precede. Os dias voltarão a ser donativos. Na mirífica paisagem desalfandegada pelas tuas mãos artífices, saberás que estrofes quadram com as imagens decantadas pelo olhar. O parapeito da janela sobranceira ao mar já não guarda as pétalas despojadas. Sobras tu, na tua incalculável plenitude. E a memória das lágrimas lilases.  

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