28.5.19

Quem sou eu para determinar excomunhões?

Courtney Barnett, “Everybody Hates You”, in https://www.youtube.com/watch?v=ugUFu8XUjgA
Não uso lanternas vertidas sobre os demais em demanda das suas fragilidades. Não os abjuro – não posso. Não contemplo a possibilidade de instruir a não ser a minha própria ignorância nos assuntos em que a ignorância subjaz, ou o meu conhecimento nos assuntos onde o conhecimento espera benfeitorias. Não faço julgamentos de intenções. Não tenho autoridade para excluir ninguém do espaço que dizem ocupar, mesmo que coincida com o meu. Não componho libelos acusatórios porque não tenho estatuto à altura. Desprezo os pedidos para terçar os libelos acusatórios contra os que outros querem arremessar para a apostasia. Mas não me apanham a determinar excomunhões.
Posso lamentar muitos desvarios, exibições de mediania em preparos sumptuosos. Posso lamentar os beócios. Posso repudiar as solenes proclamações que são a negação de si mesmas. Posso verberar (mas só internamente) os gurus que em mim causam aflição. Posso desconsiderar as muletas dos poderosos e ainda mais os poderosos. Posso rir-me desalmadamente das manifestações de estultícia. Posso agrupar num canto reservado do pedestal das pessoais irritações quem comete a proeza de a esse altar ser entronizado. Posso ficar boquiaberto com tanto despautério, tanta mentira disfarçada de ignorância e o contrário. Mas não me apanham a determinar excomunhões.
Encontro muitas pedras semeadas no caminho. Desespero com a maldade preconcebida. Aflige-me tanta boçalidade, a sobremesa da desconfiança congénita. Repugnam-me os filisteus que se embebem em avareza. Fecho os olhos à violência gratuita, para a ela não ter de reagir na mesma divisa. Conto os atentados à gramática, sobretudo de mui erudita gente que não se cansa de ostentar as comendas da erudição que em si mesmos pespegaram. Bebo para esquecer que sou pessimista antropológico. Mas não me apanham a determinar excomunhões.
Adio os adiamentos só para chegar ao apeadeiro adiante e adiar novo adiamento – só porque apetece. Ajudo quem me apetece ajudar, mesmo sabendo que o ajudado não está na escala inferior das necessidades. Fujo das convenções por me soarem a falsidades irremediáveis (e para não ser cúmplice do jogo dos fingimentos em que se entretece o xadrez social). Enfraqueço propositadamente no perene braço-de-ferro com as divindades que aplanam a risível faceta da humanidade. Sou inventário de um magro pecúlio, o suficiente para prevenir sobressaltos. Sei que me assaltam os pesadelos tonitruantes que são a fotocópia do mundo à minha volta. Mas não me apanham a determinar excomunhões. 

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