18.7.19

“Não comprava um automóvel ao primeiro-ministro”


Jane’s Addiction, “Been Caught Stealing”, in https://www.youtube.com/watch?v=jrwjiO1MCVs
(Um texto que não é sobre este primeiro-ministro, mas podia ser; é sobre primeiros-ministros, em abstrato)
Dez razões para não confiar no estado do automóvel de que o primeiro-ministro fosse vendedor.
I
            O primeiro-ministro é um bem-falante. Concedo: para primeiro-ministro, é melhor que seja bem-falante, que domine o idioma e não tropece em erros de sintaxe e de ortografia. O povo só confia os seus destinos se estiver sossegado com os dons de retórica do timoneiro. No meu caso, por defeito de personalidade, desconfio de gente com prosápia abundante e verbo fácil. Fazem-me lembrar os vendedores de feira, que também se distinguem pela retórica gongórica e pela má qualidade do produto negociado.
II
        O primeiro-ministro é recaidiço na contradição. Proclama uma coisa e o seu contrário, com a sorte de a imprensa amestrada não o confrontar com o contraditório do que diz e depois desmente ao dizer o seu contrário. Quem é prisioneiro de tantas contradições não é credor de confiança. O automóvel deve vir com defeito (porque ele abonaria o seu impecável estado).
III
            O primeiro-ministro é um diplomata incansável. Serve-se das artimanhas dos diplomatas para chamar a si o epílogo de negociações árduas, dando como seus os créditos que sobram no termo das negociações. Consegue ludibriar um numeroso exército, que o considera “negociador exímio”. Eu não negociava a compra de um carro com um “negociador exímio” (pelo menos, com um que assim se fizesse passar). Tenho a impressão de que o negócio seria proveitoso para o “negociador exímio”, apenas.
IV
            O primeiro-ministro irrita-se com quem se lhe opõe. Detesta ser confrontado com outras ideias. Não disfarça o incómodo quando é acossado. Reage com táticas de guerrilha urbana, desqualificando os oponentes com ataques ad hominem. Tinha receio de comprar um automóvel ao primeiro-ministro, pois se o veículo trouxesse defeitos não revelados o vendedor atacar-me-ia impiedosamente.
V
            O primeiro-ministro ufana-se de o ser – e revê-se como político acima da média, inderrotável. Não comprava um automóvel a um vendedor jactante. Tanta vaidade seria o mote para uma nota de desconfiança sobre a mercadoria transacionada, decerto apresentada como inigualável para a quilometragem e uso.
VI
            O primeiro-ministro é adepto do espetáculo fácil, popularucho. O defeito pode ser meu, mas estou nos antípodas desta estética. Desconfio que o automóvel vendido pelo primeiro-ministro vinha carregado de utensílios kitsch
VII
            O primeiro-ministro não esconde a propensão para a trapaça, até com os seus correligionários. Subiu na vida a pulso (o que não é mácula), mas por vezes teve de atropelar alguém pelo caminho. Não comprava o automóvel de alguém com estes pergaminhos. Ninguém garantia que o primeiro-ministro ocultasse um acidente de viação que possivelmente teria deformado o chassis.
VIII
            O primeiro-ministro tem memória curta – até no esquecimento de correligionários seus e de quem foi o seu patrono. Como se pode comprar um automóvel a alguém que fraqueja na memória, se a memória é imprescindível para reportar um registo recomendável da mercadoria?
IX
            O primeiro-ministro tem ar de malabarista. Consegue equilíbrios que, os por si enfeitiçados, consideram impossíveis – o que ajuda a construir a fama de “negociador exímio”. Um malabarista consegue convencer gente variada com interesses divergentes. Não se compromete com nenhum dos lados da barricada, conseguindo passar intacto entre os pingos da chuva. Como comprador do automóvel do primeiro-ministro, não teria como saber se o enredo era factual, ou apenas um ardil para me açambarcar como comprador.
X
            O primeiro-ministro veste mal. Admito, esta é uma incompatibilidade estética, destituída de racionalidade. Mas é argumento ponderoso: não considerava a hipótese de comprar o automóvel do primeiro-ministro, porque os seus padrões estéticos levá-lo-iam a ser vendedor de um automóvel de que eu não seria comprador. Uma impossibilidade matemática, portanto.

Sem comentários: