9.7.19

Os lamentos que tinham estrada atapetada


The Chemical Brothers, “Believe”, in https://www.youtube.com/watch?v=7f2wg1pqQDs
Fugia das sombras. Tinha medo que atrás das sombras viesse um vulto que se apoderasse dele, tomando em suas mãos a vontade dele retirada. Não queria que o vulto se transfigurasse na sua pessoa, passando a ser uma marioneta do seu próprio fingimento, incapaz de dosear a sua vontade. Os sobressaltos subiam a cena e temia que depois nem os lamentos tivessem fala própria.
Era evasivo. Não se comprometia com ideias. Dele não se sabia a adesão a uma causa, nem daquelas que, por serem tão politicamente corretas, recolhem apoio massivo. Ninguém sabia em que partido votava. Não se pronunciava sobre uma peça de teatro, ou um filme, ou um disco, ou um livro. Até os amigos sabiam que não podiam contar com ele. Parecia ter alergia à tomada de posições que o comprometessem. 
Um dia, anuiu na explicação para a inata precaução, o silêncio que era o critério para não ser apanhado em falso. Dizia que não queria, mais tarde, como consequência de uma tomada de posição, ser apanhado no lado errado da maré. E, ato contínuo, que sentisse a necessidade de expirar o arrependimento em forma de lamento. Não acreditava no poder heurístico do lamento. Prantos assim não resolviam nada, a não ser mostrar a tremenda fragilidade em que mergulhava quem levava o lamento a cena. O que o incomodava não era a fragilidade exposta aos olhos de toda a gente. A fragilidade não é motivo de vergonha. Se existe, tem de ser representada. O que o importunava era o lamento que pode convocar a comiseração dos demais, como se a piedade fizesse voltar o tempo atrás e apagasse do palco, onde desfilam os sucessivos atos, o ato que depois motivara o lamento. Não concebia a hipótese de coçar os olhos chorosos com um lamento, por causa da humilhação a que se expunha.
Alguém contrapôs que um lamento pode não traduzir a convocatória pela comiseração dos outros. Pode ser apenas um ato interior, uma contrição que se esgota, no seu efeito útil, na esfera de quem a exerce. Ele estava equivocado em considerar que um lamento era a expiação que fazia subir o ato errado ao planalto do esquecimento. O lamento – disseram-lhe, pedagogicamente – pode ser só um exercício interior, que ninguém precisa de testemunhar. Com estes predicados, o lamento deixava de lado os óbices que ele trouxera como explicação.
Aparentemente convencido que o lamento não era uma doença que desnudava quem o proferia, continuou evasivo, não se comprometendo com ideias, não aderindo a causas, não confessando em que partido votava, não se pronunciando sobre uma peça de teatro, ou um filme, ou um disco, ou um livro, não se comprometendo nem com amigos quando estes dele precisavam. Continuava a ter alergia à tomada de posições. Não seria por ter medo de se expor a um lamento. Nunca se soube por que insistia em ser um membro esterilizado da sociedade. Talvez não tivesse posição sobre assunto nenhum. Ou não soubesse tê-la. 
(O que é preferível a tomar partido sem saber porquê.)

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