17.7.19

Pneu sobressalente (short stories #129)


Einstürzende Neubauten, “Stella Maris” (Soulwax Remix), in https://www.youtube.com/watch?v=74bT4wVqyXs
          Diz-se das joias que são coisas raras. É a sua raridade que as distingue, que as torna inacessíveis. Os mercados conferem-lhe valor a preceito. Não se diz que os pneus sobressalentes obedecem à mesma lógica. O adjetivo é mortífero (para as possíveis ambições de grandeza valorativa do pneu sobressalente). Qualquer coisa a que se atribui o papel de substituto tem, à partida, a mácula da desvalorização. E, todavia, está errado o juízo de desvalor. Ao pneu sobressalente não se atribui importância enquanto permanece armazenado no sossego da bagageira. Os outros quatro pneus cumprem a função. Ninguém se lembra do pneu sobressalente. O oblívio mandata o desvalor do pneu sobressalente. Até que um contratempo irrompe e, por anomalia num dos quatro pneus rolantes, é preciso deitar mão do pneu sobressalente. Suponha-se que antes o pneu sobressalente foi preciso e a condição preguiçosa impediu que fosse reposto em seu lugar. Não é difícil pressagiar o raciocínio estulto: ao recorrer ao pneu sobressalente, à personagem não ocorreu reparar o pneu destroçado, ou substituir o pneu sobressalente. Não terá configurado o devido valor do pneu sobressalente, nem quando dele precisou para o veículo continuar locomovível. À segunda, o contratempo foi doloroso. Por ausência do pneu sobressalente, o veículo ficou imobilizado. Só então a personagem terá atribuído valor ao pneu sobressalente. Por causa da sua ausência. Num golpe do acaso, um objeto irrelevante, e só irrelevante porque atua como sucedâneo, torna-se mais valioso do que uma joia preciosa. Se a personagem visse interrompida a viagem e a algo de muito importante não pudesse acorrer, os cálculos mentais não só desfraldariam a inútil bandeira do arrependimento, como adestrariam a conclusão de que um pneu sobressalente não tem preço estimado. Sobretudo quando é preciso usá-lo. É como acontece com todas as coisas a que se atribui valor. A sua impossibilidade faz crescer, e exponencialmente, o seu valor. (Há quem diga, com maior carga negativa, que é quando estão em falta que as coisas ganham o seu valor justo.)

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