3.7.19

Tenho uma janela nas mãos (short stories #127)


Xinobi, “Piano Lessons”, in https://www.youtube.com/watch?v=BCJ09PRg4-0
          Não digo que não sei das quimeras. Amanhece; tu e eu amanhecemos e damos a conhecer a manhã inteira. E eu sei que sou outro dia, como a luz ainda pálida da manhã, a luz promissora. Contenho nas mãos um mundo. Toco as mãos, como se em meu tato soubesse ler todas as paisagens retidas na cortina da memória. Elas passam, céleres. Atropelam-se em breves fragmentos que são parte de um também breve filme que desfila no palco da memória. E, todavia, não queremos ser reféns das memórias. Não queremos ficar contentes com o mundo que se entretece nos poros das nossas mãos, nem nos queremos saciar nas porções de paisagens que compõem a tela que se perfila no horizonte. Preferimos olhar para as mãos como a janela insaciável. A janela que porfia no alpendre onde há mais mundo, muito mais mundo, por cursar. São essas as quimeras que prosperam dentro do peito incontido. Um fósforo à espera de ser ateado. E a mão que o empunha, não embaciada pelo desejo irrefreável, congemina o fio condutor que arruma a chama na extremidade inflamável do fósforo. Tudo faz então sentido. É como se uma janela se desembrulhasse das mãos fechadas em concha e através dessa janela os olhos se banqueteassem nas paisagens avulsas, nas cidades que são o tempero da nossa madurez, dos caldos de cultura em que nos banhamos. Tenho uma janela nas mãos e não a quero escondida. E um repto insaciável que se sobrepõe aos contratempos, um móbil que é um poema andante, os lugares por nos onde apetece viandar, os lugares que se afidalgam à nossa passagem. Da janela entreaberta, já emancipada das mãos, ouvimos uma voz que murmura as estrofes que damos de memória ao álbum que reúne as fotografias que o tempo não desgasta. Talvez sejamos nómadas, o que não é ambição sem quartel. Da janela que se desembaraça das mãos, o mundo povoado por nós. E nós, seus lídimos embaixadores, trazendo mais fragmentos do mundo que são devolvidos às mãos, para enfim nos deitarmos com o peito cheio de tudo o que somos na maré-cheia do que a nós trouxemos. 

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