29.10.19

Alpinistas


Beck, “Uneventful Days”, in https://www.youtube.com/watch?v=6AF_CJhpTzQ
Contamos paredes. Pela vida fora. Contamos as paredes em que esbarra o olhar. As paredes que precisam de ser superadas, se não queremos a letargia. 
Umas paredes são mais difíceis. Uns cedem à tentação de dirigir os esforços para a superação das paredes mais fáceis. Outros, mais ousados, teimam com paredes mais difíceis, paredes que à partida parecem insuperáveis. As paredes têm diferentes significados para diferentes pessoas. E as pessoas diferem na congeminação das forças exigíveis para lidar com uma parece. É inútil caucionar regras objetivas sobre as paredes que são obstáculos para pessoas tão diferentes.
Contamos as paredes, numa sucessão que parece não ter fim. As intermináveis paredes não reabilitam a capitulação. Desistir à frente de uma parede pode representar a demissão de si mesmo, a impressão confirmada de que alguém se apequena à primeira contrariedade. Contamos as paredes e sabemos que temos de subi-las. Não podemos ser alpinistas simultâneos de várias paredes. Lançamos o corpo a uma parede de cada vez. Às vezes, exige-se uma intermitência: deixamos uma parede a meio porque a urgência exige atenção a outra parede, cuja subida não pode ser procrastinada. A parede que ficou a meio não é um adiamento sem prazo inscrito num caderno de encargos. Ficou a meio, mas o caminho desmaninhado deixou um rasto que serve de mote quando se regressa àquela parede. Trepá-la já não será tão difícil como se a empreitada começasse de novo.
Vemos as paredes e lançamo-nos a elas. Sabemos que a sede da existência se sacia na exigente tarefa de subir uma parede. E no conforto que invade a alma quando vemos a parede do outro lado, depois de conquistada. Lançamo-nos a elas, tantas vezes sem o amparo de um arnês. Só o corpo e um precipício livre, que não transige com segundas hipóteses. As paredes não toleram amadores. Se o alpinista se despojar de zelo, pode esperar que a parede o derrote. Não conseguirá vê-la do outro lado, nem as paredes que se perfilam no horizonte e que se escondem atrás da parede diante dos olhos. 
Não é a ausência de arnês que serve para desmotivar a empreitada. Contamos paredes. Contámos as paredes que deixaram de ser embaraço. E continuamos a contar as que vêm semeadas com a intemporalidade que só capitula com a finitude. A contagem das paredes é uma prova de vida.

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