30.12.19

Oito cilindros (short stories #186)


Kate Bush, “The Sensual World”, in https://www.youtube.com/watch?v=h1DDndY0FLI
          A voz compõe uma fala altiva. Porém, ninguém o ouve. Ninguém o toma pela seriedade que reclama ter. Considerar-se-ia uma farsa, não fosse ter de si uma elevada estima. Não consegue convencer, com aquela retórica baça, disfarçada de impertinente aconselhamento – quando o aconselhamento não foi demandado e se assemelha a uma intrusão. É uma mania própria dos gurus. Têm de si uma imagem mais elevada do que a estatura que trazem consigo. O que ninguém pergunta é se o guru se aconselha com alguém. E se este conselheiro procura aconselhamento – e assim sucessivamente, até se atingir o apogeu com uma qualquer entidade (não necessariamente divina) que reúne em si a nata dos conselheiros. Um dia, alguém proclamou: “Só procura conselho quem não sabe dar conta de si.” Outro contrapôs: “pedir um conselho é ato de humildade. Ninguém sabe de tudo o que apraz saber. Temos de o procurar no exterior de nós.” Talvez o caminho razoável esteja algures a meio caminho. Tanto há quem procure legitimar os atos através de um conselho que vem do exterior, como há os que vivem amordaçados pela hesitação e é através de um conselho que julgam destroçar as dúvidas. E há os que consideram o aconselhamento a última instância, numa confissão de incapacidade – e não há ato de maior humildade do que admitir a incapacidade que turva a lucidez. Não pode ser o estado de necessidade de alguém a determinar a oportunidade para uns charlatães saírem do exílio. Quem tem a cilindrada exponencial não são os charlatães disfarçados de gurus da recomendação, muito embora surjam bem-apessoados. Os que se autoinvestem na condição de conselheiros das almas estão condenados à vegetativa condição da sua minúscula cilindrada. Noutro dia, alguém considerou uma possibilidade: “a lucidez embaciada previne o entendimento das coisas. Não há mal nenhum em estender a mão a quem consegue interpretar o embaraço desde o exterior.” Sem demora outro ripostou, em jeito de desafio: “e como pode alguém que está no exterior do ser se capacitar das suas angústias? Como pode, na posse desse desconhecimento, ousar colocar-se no papel de conselheiro?”

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