9.12.19

Os dias finais


God Is an Astronaut, “Mortal Coil” (live at Warsaw), in https://www.youtube.com/watch?v=Vp-a4FKo9yM
Os dias finais: umas férias, quando o lugar passou a ser extenuante e a casa convoca o regresso. Uma vagarosa peregrinação pelos lugares que já parecem gastos. E, porém, continuam a ser lugares vagamente conhecidos. Pelos dias finais, emulsiona-se a pertença ao lugar que não se julga ser fiel de uma pertença. Os dias finais exacerbam este paradoxo, para a divisão interior açambarcar a alma.
Ou os dias finais antes da consumação de uma empreitada. O pressentimento do encargo enfim resolvido não aplaca uma certa angústia do tempo, com o tempo. A empreitada ainda não está consumada, falta um pequeno quase, o parecer que se soma à definitividade da empreitada. E, porém, é como se fosse assunto encerrado e sobrasse, a destempo, a agonia de um espaço por preencher. Os dias finais antecipam essa agonia e podem furtar atenção preciosa aos passos derradeiros que se esperam até ao consumar da empreitada. 
Ou os dias finais na casa que deixa de o ser. A casa a caminho de ficar vazia. E, ao mesmo tempo, a casa cheia, quando contemplada com uma fusão de nostalgia e de alívio. Nostalgia das memórias da casa habitada que não ficam dentro dela, por ser um objeto inerte. As casas só não são objetos inertes quando não estão contaminadas pela terrível impressão dos dias finais. Quando são habitadas por quem lhes empresta vida, as casas têm vida. Na véspera da sua desocupação, em sucessivas levas de material transitado para outro lugar que passa a ser a nova residência, os dias finais são uma custosa tatuagem nos desabitantes, o esvaziar da casa como se ela estivesse a perder vida, minuto atrás de minuto. Até se virar as costas à casa que passa a ser de outrora e a vida renegoceia-se.
Os dias finais, antes que sejam os dias infantes de outra coisa qualquer. Os dias finais não são finais. São o emolumento da vida que se movimenta no espaço onde a vontade e a sua exterioridade se misturam. Os dias finais acontecem sempre. Pode ser na ramerraneira estafeta do calendário, a sucessão dos dias que se agigantam no orvalho da alvorada. Pode ser na maravilhosa equação das mudanças, quando a meta se avizinha e os dias finais parecem metros que emagrecem até ter a mão na meta desejada. 
Dias finais. Antes que finais sejam os dias.

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