31.12.19

Vigilância (short stories #187)


Hot Chip, “One Life Stand”, in https://www.youtube.com/watch?v=db9dBKcpIOw
          O sino da igreja aguarda pela sua vez. Espera para inaugurar o silêncio com o seu troar sincopado. Não consta que haja gente a aguardar pelo ribombar do sino. As pessoas estão habituadas à marcha do tempo. Sabem que o sino da igreja é a melhor testemunha (como se já não bastassem as penitências quando saem da igreja). Em segredo – porque ninguém o admite – muitos são os que estão de atalaia. Esperam pelo vociferar do sino e é não por não trazerem relógios consigo; é um ritual, as pessoas (sitiadas pelas superstições) são devedoras dos rituais. Ainda por cima, a próxima é a noite em que uma importante dobra do calendário está em liça. Muda o ano. Muda o ano quando o sino da igreja entoar a décima segunda metálica martelejada, que ressoará na cabeça de muitos aldeões como uma intrusiva agressão, desnecessária se não fosse tratar-se da badalada que sela a inauguração do ano menino. Os aldeões podiam confiar na contagem decrescente dos programas de variedades das televisões, mas ouviram dizer que esses programas são gravados e que a folia consequente, quando os artistas celebram o começo do novo ano, é um fingimento. Nunca mais acreditaram numa palavra dita por estes artistas. Daí em diante, do epílogo da sua perene vigilância, no arpejo da inata desconfiança, passaram a duvidar da contagem decrescente: quem garantia que as televisões estivessem afinadas com o relógio da igreja, esse sim o zelador do tempo por que se guiam? Era assim que as coisas se passavam naquela aldeia e nas aldeias circundantes. Toda esta gente vigilante desligava as televisões um minuto antes do finar do ano velho, ficando de atalaia às estrondeadas do velho sino, do fidedigno sino. E que não viessem os novatos habitantes, gente de meia-idade exilada da cidade, que se diz conhecedora das modernidades e da tecnologia, contaminar os usos estabelecidos. Os aldeões, arreigados aos usos, estão de atalaia contra os que forem proponentes de adulterações.

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