Balthazar, “Fever”, in https://www.youtube.com/watch?v=z2X2HaTvkl8
Terçam-se as armas no tabuleiro onde se dispõem as peças, e o jogo espera. Antes do jogo e já se terçam as armas. Ninguém tem medo de perder. Ninguém tem medo de se precipitar contra a moldura do jogo e jogar as peças antes do tempo. O jogo joga-se antes mesmo de começar.
Quem vai ganhar o jogo que pressente o jogo? Talvez seja a pergunta mais irrelevante que se possa formular nos preparativos para o jogo que vai ser a contar. Parece que o jogo válido é o que tem lugar antes de o jogo começar. Um jogo antes do jogo nunca deixou de ser um jogo sem folha de serviço. É um jogo a contar para o troféu do nada. E, contudo, parece um jogo de morte. As forças esgotam-se e os intérpretes parecem consumidos por uma loucura que os cega, indiferentes ao jogo que conta.
As estratégias também contam. As estratégias entretecem-se num jogo à parte, lateral ao jogo a contar. Sopesam-se nos ardis dos adversários. Esboça-se uma autêntica teoria dos jogos. Um dos adversários dá um passo para deixar um engodo ao outro. Supõe que este tem capacidade para antecipar o gesto e dá um passo que é oposto do que julga ser o gesto antecipatório do adversário. Não consegue contar se este antecipa como deve ser o seu gesto antecipatório. Enredam-se numa teia de suposições e de adivinhações do gesto do adversário e da sua reação antecipatória aos gestos do outro. A certa altura, já não sabem o seu próprio nome, tantas as hipóteses desdobradas em milhentas hipóteses em cascata. É o jogo inútil: as elucubrações exaurem as forças e os adversários perdem as referências, as próprias e as que julgam ser as do outro, quando começa o jogo a contar.
Um dos intérpretes vai a jogo, ao jogo a contar, a roçar os limites da decadência, tantas as forças consumidas no estéril jogo prévio ao jogo a contar. Diz coisas sem sentido. Parece prostrado. Não esconde o desânimo. Dá a entender que sobram poucas forças para ir a jogo. A sua aparência parece sinalizar a mão estendida na direção do adversário, como quem convoca a compaixão do outro. É como se estivesse a suplicar para o outro não jogar um jogo que sabe estar ganho, à partida. Como se estivesse a proclamar a sua falta de comparência. O adversário expande o sorriso. Sente o odor do triunfo antes de o jogo ter começado. Não contempla a hipótese de transigir com o adversário, no gesto de compaixão rogado. Será implacável. Espera uma vitória contundente, num jogo que não terá demora.
A imagem do desequilíbrio é uma farsa. O gesto do intérprete que veio a palco exangue, como se estivesse derrotado antes do começo do pleito, foi propositado. Um disfarce. Uma cilada, para convencer o adversário da desigualdade de forças no tabuleiro. Para que este se convencesse que a vitória estava garantida. Mas o jogo foi virado do avesso. Num golpe de asa, o que de si fez uma imagem de derrotado assestou um golpe certeiro, duro, que desfez a nada a reação do sequaz da altivez que já contava as favas da vitória. Inerte e perplexo, já nem se levantou do tabuleiro.
Fez-se a profecia: era melhor o outro não jogar o jogo que sabia à partida estar ganho.
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