Michael Kiwanuka, “Final Days”, in https://www.youtube.com/watch?v=jOtqTcFknvY
- Como dizemos, em linguagem gestual, que estamos admirados?
- Que importância tem isso? O teu esgar não é a bandeira da admiração? Não é suficiente?
- Mas devia haver um compêndio para a decifração dos gestos e dos meneios dos rostos. Uma correspondência entre gestos e meneios dos rostos e palavras. Para que não ficasse nada por dizer no rescaldo dos gestos e dos meneios dos rostos.
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Não sabiam da existência de um perito, assim como os há para cuidar das maleitas das almas, que de si tem uma elevada consideração como exegeta dos rostos. Já fora tempo de o perito reclamar cátedra no espaço público, assinando sentenças certeiras sobre a significação de esgares, perante a anestesia quase geral. Caído em desgraça, acantonado no seu laboratório, o tratador de rostos podia servir de tradutor das dúvidas sobre a cor gestual do pasmo que toma conta das pessoas.
O oblívio do exegeta dos rostos era, porventura, uma das maiores injustiças da sociedade hodierna.
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- Não te percebo. A sério, não percebo. Se as palavras às vezes têm múltiplos sentidos, para que precisamos de dar à complexidade mais pano para mangas com um compêndio para gestos e esgares?
- A pergunta encerra a sua resposta. A complexidade não está em haver mais um compêndio. Está no que o compêndio pode revelar.
- Na hipótese de incerteza, tiras a limpo. Perguntas o que significou o gesto ou o esgar, para não ficarem hesitações a pesar sobre ti.
- Eu sei que tenho essa possibilidade. Mas, o que custa termos um compêndio que dispensa essas interpelações?
- Uma boa conversa não tem sucedâneo. E se a pessoa que tutelou o gesto ou o esgar não corresponde aos padrões vertidos no compêndio? O compêndio levar-te-ia a conclusões precipitadas, erradas.
- És contra manuais de instruções...
- Não sou contra nem a favor. Depende dos casos. Se me pedires para instalar uma cadeira de escritório, preciso do manual de instruções. Dispenso-o para a hermenêutica de esgares e gestos. A interpretação fica por minha conta. E se dúvidas sobejarem, interpelo quem devo interpelar. Uma clarificação é imbatível. Superior a qualquer compêndio.
- Ninguém te obriga a seguires o compêndio...
- Sei-o bem. E ninguém me impede de ter uma ideia sobre o compêndio de que falas. A minha objeção é que um compêndio dessa natureza reduz as pessoas a categorias. Estereotipar é um crime contra a diversidade da espécie. Não creio que seria uma obra com coutada na ciência. Os esoterismos merecem, no máximo, sebentas.
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Pelo entardecer, o murmúrio das vozes silenciava os gestos e as expressões ditas pelos rostos das pessoas. As vozes sobrepunham-se e estalavam nos ouvidos, desviando o olhar para a copa das altas árvores despidas pelo outono.
As árvores também têm gestos, rostos consoante as estações e o tempo que faz lá fora. Ninguém pergunta pelo seu estado de espírito. Sobre as árvores, há compêndios de botânica que não inquirem sobre os gestos e os esgares.
Talvez fosse do entardecer, da luz desmaiada que pressagiava o primeiro fogacho da noite. O pressentimento da escuridão fermentava um olhar desconfiado. Quem, em sua lucidez, podia desejar um compêndio sobre esgares e gestos?
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