6.12.19

Cercados por convenções


Parquet Courts, “Freebird II”, in https://www.youtube.com/watch?v=jHfOqqQ1DLQ
#3 – Odeio convenções. Odeio tudo o que tenha o selo de uma trela e que essa trela seja imposta do exterior.
#1 – Sempre que posso, escapulo-me de convenções. E não é por prazer lúdico, ou por espírito de contradição.
#3 – O mal é que esbarramos todos os dias em convenções. Até nas minudências, quase sem darmos conta, acabamos cúmplices das convenções por não as denunciarmos.
#1 – De acordo! Os sinais de trânsito; os cumprimentos às pessoas conhecidas, sob pena de sermos mal-educados; a roupa que não pode ser de certa forma; a assinatura exigida para validar contratos; a gorjeta nos restaurantes; a deferência pelos figurões; a noite para dormir (ou a noite para a boémia, segundo os boémios); a esmola obrigatória, sob pena de sermos arrastados para a lama da insensibilidade social; e o mais que se possa inventariar.
#2 – Já tiraram um minuto para pensar como seríamos se não nos regêssemos por convenções? Imaginam o transtorno contagiado às relações sociais? Imaginam-se reféns da anomia?
#1 – Essa é outra convenção, a convenção das convenções: se não formos obedientes às convenções registadas, se todos assim atuassem, o caos tomava conta de tudo. Esse meta-argumento é cinzelado escrupulosamente para lapidar as arestas dos que ainda se mostrem renitentes às convenções. Quando já não houver arestas e todos, sem exceção, respeitarmos as convenções, será um mundo perfeito o que se descerra diante dos nossos pés. Aconselho a desconfiança metódica.
#2 – Não uses da fina ironia para falar de um assunto tão sério.
#3 – Outra convenção:  não se escarnece das “coisas sérias”, mesmo antes de alguém ter isolado na fauna de conceitos o conceito de “coisa séria”. 
#1 – As convenções são uma das causas dos atrasos em que medram as sociedades. E, depois, sua consequência. O atraso impede que se certifique a liberdade, encarada como um inadmissível ato de desrespeito. 
#3 – Eu não tomo por minhas as convenções firmadas. São as convenções dos outros.
#1 – Nem eu.
#3 – Nós somos como gatos assanhados, sem covil, sem trela a quem responder. Fugimos das convenções e apraz-nos estar à margem de qualquer reconhecimento, da obediência a convenções.
#1 – Não é fácil. Às vezes, endossam-nos a etiqueta de sociopatas. Porque não nos revemos nas convenções e delas dissidimos. 
#2 – Queria que ficasse registado em meu conhecimento o seguinte: quando se afastam das convenções, alinhando nos seus antípodas, escolhendo outro albergue onde afinam as vossas existências, não estão a escolher uma convenção, uma convenção que não quadra com as convenções dominantes, mas uma convenção?
#1 – Essa agora! O simples afastamento das convenções é a marca registada da nossa insubmissão. Um insubmisso não perfilha convenções.
#2 – Julgo que daí resulta uma convenção. Uma convenção de sinal contrário, é certo, mas uma convenção. 
#1 – Não percebo o raciocínio.
#2 – Quando repudias uma convenção, estás a adotar um comportamento que se lhe opõe. Logo, estás a fabricar uma convenção, nem que seja privativa do teu pensamento, ou a subscrever uma convenção contracultura que não deixa de ser uma convenção. Fora do sistema, possivelmente ocupando o lugar que é o seu antagonismo. Mas uma convenção.
#3 – Acreditas no que dizes? Parece vazio de significado. Parece um raciocínio devidamente incompleto. 
#1 – Continuo a discordar: o repúdio de uma convenção atira-me imediatamente para as margens. A insubmissão é o lacre das margens. Como podes considerar que esta escolha corporiza uma convenção?
#2 – Todos somos feitos de vontade e de escolhas, o estuário da vontade. Se escolhes rejeitar uma convenção, é porque as tuas ideias se incompatibilizaram com essa convenção. Afastada a convenção, segues por outro caminho, organizado ou aleatório. Mas é um caminho, uma convenção. Poderás não gostar do rótulo, poder-lhe-ás chamar algo diferente, mas na minha linguagem não passa de uma convenção.
#3 – E se for mais radical e proclamar que repudio todas as convenções e não escolho, em sua substituição, nada? Um niilismo convencional não é suficiente para estilhaçar a tua teoria?
#2 – Não. Se não abraças nenhuma convenção contracultura, o teu comportamento é um padrão. Teu. Logo, a uma convenção. Se insistires num deserto ontológico, esse deserto ontológico é a tua convenção.
#1 – Por que não defines convenção, para sabermos se estamos a falar do mesmo?
#2 – Se há convenção enraizada é a impossibilidade de definir convenção como conceito. 
#3- Agora fiquei com a impressão de que o teu argumento é a negação das convenções. Afinal, estamos em sintonia.

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