10.12.19

Sem espinhas


TLC, “Waterfalls”, in https://www.youtube.com/watch?v=8WEtxJ4-sh4
De um espaço infinito sussurrava uma voz perene, teimando na toleima da demanda insistente. Tudo se passava no meio de um palco embotado pelo nevoeiro persistente. As vozes sobrepunham-se, sem ordem, e da competição de pregões (que assim pareciam as falas entrecruzadas), sobejava um odor a obstinação. Diziam, uns aos outros: “a capitulação fica para os mais fracos.”
Em comandita, escavavam o chão humedecido pela noite. Só com a ajuda das mãos. Ouviram dizer que aquela terra escondia tesouros miríficos. Ainda bem que o outono estava pródigo, neste ano. Se fosse em anos anteriores, quando o outono se postergava numa tibieza indelicada, o solo estaria duro e as mãos teriam dificuldade em escavar o chão. Um deles exclamou: “assim, é sem espinhas!” Os outros, mais comedidos, não traduziram a exclamação em esperança. O chão simplificado não garantia a descoberta do tesouro.
“Seja como for”, acrescentou, em voz de lamento, um dos garimpeiros da fortuna, “estamos aqui unidos no mesmo propósito. Talvez seja esta a nossa verdadeira fortuna.” Imperou o silêncio. Estavam todos concentrados na demanda, metendo as mãos na terra amolecida pela chuva abundante das semanas anteriores, todos tomados pelas imagens mentais que atravessavam a tela imaginária enquanto persistiam na função, as imagens impregnadas de abundância. Não se perguntavam por que era necessária a abundância. Essa fora a sua educação. Nos tempos da escola, foram instruídos que só vinham nos livros da História os que alfandegaram uma fortuna qualquer. 
(Nenhum deles sabia quem fora D. Sebastião. Os alunos daquela geração foram poupados à humilhação da desesperança.)
As covas eram cada vez mais fundas. Alguns deles tinham cavado tão fundo que já não eram visíveis do exterior. Entusiasmado com a avidez da escavação, o comparsa que houvera dito “assim, é sem espinhas!” repetiu o preceituado: “assim, é sem espinhas!” Desta vez, acrescentou outra exclamação: “Não desistam, companheiros, o tesouro está próximo das nossas mãos!” Os outros continuavam em silêncio. E continuavam a escavar, mais fundo, os dedos encardidos pela mistura de terra enegrecida e de água, alguns notando o sangue a desprender-se das unhas. Do exterior, só se conseguia discernir oito covas bordejadas pelos montes de terra amolecida extraída com as mãos dos irredutíveis operários em demanda de uma fortuna qualquer. 
Ao amanhecer, um silêncio compungido tomara conta do lugar. Não havia movimento. Os oito comparsas, exangues, jaziam no fundo das fundas covas escavadas. Eram cadáveres. Confirmou-se: o tesouro estava naquele ermo lugar. Eram os oito comparsas que emprestaram seus corpos ao lugar assim enriquecido. Sem espinhas.

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