Stereossauro, “Verdes Anos” (ao vivo na Antena 3), in https://www.youtube.com/watch?v=v7A1pmlePDA
Provocar o cenário: a neve estava a jeito, pois é do natal que se cuida e pelo natal os contos pedem uma dose de neve, ou não fosse o imaginário natalício a paisagem tomada por um nevão. Mas seria um lugar-comum, e o conto natalício talvez exija uma extração ao lugar-comum. Ou não: por que tem o conto natalício de provocar a sua própria originalidade? Só para convocar a linhagem da originalidade, mesmo que depois se enovele numa retórica e num cenário que a ninguém faz reconhecer o natal?
Continuar a provocar o cenário: um conto para crianças, ou um conto que poupe os infantes? O costume é desenhar as palavras a preceito dos mais novos. Respeita-se a ilusão que os enfeita, ainda a tempo de não serem contaminados por um banho do mundo que desmente o lugar idílico reservado ao natal. Ou alinhavar o conto para a idade adulta, preenchendo-o com o lugar-comum do natal como ele é representado pelos adultos? Ou deixar a imaginação sem rédeas, congeminando um conto de natal que sirva as preferências dos adultos, sem nenhum ponto de contacto com a representação tradicional do natal?
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As renas eram servidas à mesa, substituindo o bacalhau. Por imperativo ecológico. A Europa determinou que as reservas de bacalhau mostravam o perigo de extinção da espécie, decidindo o sequestro da pesca por dois anos. O mesmo estigma não pesava sobre as renas, criadas à solta nos países nórdicos e desligadas das obrigações de transporte de São Nicolau, para irem parar às mesas das famílias lusitanas (para gáudio dos produtores e dos comerciantes de renas, que não estavam à espera deste bodo aos ricos).
Em substituição das renas, milhões de clones de S. Nicolau recorreram a drones. É mais moderno e ninguém pode escapar às vicissitudes da modernidade. O recurso teria outra virtude: os drones não seriam apanhados em contravenção a amedrontar aviões junto a aeroportos, nem seriam usados para fazer da guerra um meio seguro de atacar o inimigo, elevando a hipocrisia de todas as guerras ao máximo expoente.
Não podia ser escamoteado o simbolismo: drones usados para meios pacíficos, a pretexto das necessidades natalícias.
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Era um pranto que parecia interminável. A menina não conseguiu dormir a noite toda. Os pais, sobressaltados, perguntavam a razão de tanto pranto. E ela só devolvia o silêncio, agarrada a um envelhecido urso de peluche que era, como ela, adolescente. Nem ao telemóvel prestava atenção, tendo-se esquecido dele (e os pais que julgaram ser o telemóvel o oxigénio da menina).
Dois dias depois, a menina abriu o livro. Começou por informar que não o fizera antes por respeito ao natal – o respeito que o natal ainda merecia, que era pouco, mas ainda era algum. Soubera que as renas eram abatidas no convencimento que cuidavam da tradicional empreitada natalícia: deixavam-nas levantar voo com o holograma de S. Nicolau no dorso e, quando começavam a esboçar o sorriso por saberem que iam espalhar felicidade consumista entre os mais novos e os demais, eram abatidas por um dardo contendo um analgésico letal. O dardo era disparado desde um drone.
No mês seguinte, a menina, não conseguindo conter a sua raiva, alistou-se no modernaço partido de extrema-esquerda que mais abjurava o capitalismo. Ironia do destino: a neófita apoiante do partido de extrema-esquerda que mais abjurava o capitalismo foi motivada pela entorse do natal.
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