17.3.20

As décadas do medo


Black Rebel Motorcycle Club, “Red Eyes and Tears” (live on Later on Jools Holland), in https://www.youtube.com/watch?v=YIGVcwycp0E
“Resta-nos sobrepor ao medo que nos desapropria de nós o medo desse medo, o de sermos menos do que nós.” José Gil, Publico, 16.03.20, p. 5.
O espelho fardado não sai da retina. Mas afinal não é um espelho só. É uma sequência de espelhos, por onde se subtraem múltiplos labirintos de onde as pessoas não conseguem escapar. São reféns de uma camada de labirinto e sabem que não podem comunicar entre labirintos. Não conseguem ver se não o espelho a que pertence o seu labirinto. Têm medo. Todas as pessoas têm medo, num tempo e num modo que é diferente entre as pessoas. Às vezes, ergue-se um muro pútrido que cimenta um medo transversal – o medo a que ninguém parece conseguir furtar-se. E o medo dá alvíssaras a um medo que o supera, e assim sucessivamente.
Não são rudimentares os pensares que se estruturam nos muros do medo. Podia-se dizer que a pele – a pele coletiva da espécie, sem exceções – é amurada pelo silêncio do medo. Diz-se, pressentindo a agonia: antes se traduzisse o tear do medo em palavras dele representativas. Antes houvesse a aliteração não mundana dos medos, com a consciência entronizada no tamanho de que os medos se medem. O silêncio sepulcral que se abate perpetua os medos que são transversais. Cobrem os olhares com uma cortina baça, densa, inexpugnável. Arroteia-se o medo irreparável.
Uma reinvenção semântica ajuda a reparar a instalação do medo. Isole-se o medo e que as pessoas interiorizem que o medo maior é ter medo desse medo. Ele acabará esvaziado no umbral onde fermentam os rudimentos de um olhar diferente, desprendido de peias, não açambarcado pelos esgares contaminados pelo ar de desgraça perene, quase apocalítica, que leva vencimento. Ter medo desse medo para que não sejamos meãos à mercê dos algozes que não titubeiam em arpoar um cataclismo à aurora de cada dia.
Não podemos ficar reféns de uma visceral inquietação que nos condena às décadas do medo. Porque o tempo não acaba de véspera nem se ordena, em sua finitude, com tão pouco prazo de antecedência. O medo do medo há de superar as décadas do medo.

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