26.3.20

O que deitamos na garrafa atirada ao mar


Faith No More, “Take This Bottle”, in https://www.youtube.com/watch?v=3g3O5gvSpcA
Dizíamos: esta é a garrafa que vamos deixar de legado. Vamos deitá-la à maré a preceito e esperar que o sortilégio das correntes a leve para um apeadeiro qualquer, onde alguém estará para ser fiel depositário da garrafa.
Temos de ser criteriosos. Evitar o mundano. Esperar pelas convulsões do tempo, que passem e deixem a seara limpa para a nossa sementeira. Não queremos ficar reféns de uma precipitação analgésica. Porque se trata de cuidarmos de um legado vertido numa garrafa que terá o mar como destino. A nossa envergadura não cabe numa garrafa, sabemo-lo sem hesitações. Menos o será como representação de um amor que dispensa palavras como seu retrato, pois o mundo não cabe na algibeira deste amor. Mas insistimos: é nesta garrafa que deixaremos um módico de nós para memória futura. Não é empreitada para cuidar com frivolidade. Levemos o tempo que acharmos necessário para temperar a empreitada. Seremos os fautores da sementeira, mas alguém, noutro lugar sem paradeiro, será o seu hermeneuta.
O que deitamos na garrafa que será atirada à maré? A ilusão frondejante dos nossos olhares irrepreensíveis, a insaciável curiosidade do mundo, a cumplicidade derramada na presença recíproca, o quotidiano que ajuramenta outros quotidianos em forma de candeia, a maresia desprendida dos nossos corpos quando os deixamos em roda livre, a música hasteada no apetite das nossas bocas, uma estrofe meticulosamente desenhada pelo pulso generoso de um poeta. Deitamos ao mar fortuito os dias vertidos na memória, por mais que não sejamos artífices da memória e queiramos confiscar o incalculável valor do tempo presente com a inteireza das mãos. E tudo tem cabimento da garrafa, condensado em arquétipos ciciados no rumor que se agarra aos nossos corpos. Deitamos ao porvir a meação de nós em uníssona fala, o verbo que apenas contamos um ao outro, e eu guardo a madeixa do teu cabelo sobreposto ao meu olhar e, ainda assim, um sextante da lucidez singular que desagua no meu olhar.
Não queremos saber quem será o destinatário da garrafa. Não cuidamos de a enviar por correio registado com aviso de receção. Não queremos saber de identidades. Só cuidamos do espaço vital da nossa identidade, da que fomos fruindo no lugar comum que erguemos como cidadela. Alguém há de recolher a garrafa, num lugar qualquer. Não queremos saber. Nosso mister terá sido a arquitetura do teor da garrafa, a continuação, como herança, do lugar perene que seremos nós.  

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