31.3.20

Clorofórmio


Jóhann Jóhannsson, “Flight From the City”, in https://www.youtube.com/watch?v=AlftMNmDH00
Não trazíamos à boca a paisagem estilhaçada. Teimávamos em conservar a ideia idílica, a que pressentia a paisagem inteira antes de ter sido armadilhada pela tremenda voz que troava vinda de um subterrâneo sem paradeiro. E perguntávamos: o mar faz parte da paisagem? O mar não é o fim da paisagem, onde a terra se precipita num abismo, o seu vazio monumental? 
Não sabíamos que o temperamento dos resistentes era inconsequente. Diziam: não adianta, é um esforço em vão, a latitude gasta nos sucessivos novelos em que uma bússola avariada se prometia. Voltávamos à casa da partida: o mar faz parte da paisagem? Devolvíamos a interrogação com outra interrogação: e quando uma paisagem é sobre a indiferença, repetindo-se na mesma imagem por distâncias sem fim, deixa de ser paisagem? Deixa de contar para o mapa-múndi?
 Não concebíamos as paisagens deslaçadas umas das outras. Podiam dizer que as inquietações deviam dominar a análise dos tempos. Podiam advertir para a intemporalidade das palavras que se esmaga na urgência dos tempos. Não queríamos saber. Que nos acusassem de parricídio da emergência, era-nos indiferente. Podiam até sobre nós verter a acusação de estarmos intencionalmente sob uma anestesia que impedia de decifrar os maus enredos do mundo, como se a anestesia nos isolasse do medo. E perguntávamos: o medo é uma vergonha? Deixamos que as paisagens sejam agredidas pelo plúmbeo só porque o medo veio à boca de cena?
Não esgrimíamos argumentos. Era contra a nossa natureza: do que mais gostamos é de esgrimir argumentos, empurrá-los com a força inteira do corpo até chegarem ao seu limite, até poderem ser negados pela sua própria argumentação. Mas isso era dantes. Quando ainda não estávamos anestesiados contra os impropérios do mundo. Desarmados para a argumentação, não transigíamos com as interrogações. Continuavam o seu desfile, imparáveis: somos o resgate das circunstâncias que nos amordaçam? Quanto de nós se hipoteca no tabuleiro onde se conjugam os verbos proibidos, os tabus inverosímeis, as chamas brancas que incomodam os sonhos?
Não contemporizávamos com o menor denominador comum. Nos tempos que são de emergência, era o maior denominador comum. O efeito anestésico que mostrava as paisagens formidáveis onde não havia elfos nem feiticeiros e das orlas se desprendiam as pétalas de ouro que falavam através das nossas palavras. Das palavras que destinávamos às interrogações, antes que elas se extinguissem. Antes que nós nos extinguíssemos. 

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