4.3.20

Os fabricadores de verdades


David Byrne, “Once in a Lifetime” (live in SNL), in https://www.youtube.com/watch?v=bkhQKV5o1-g
Não se cansava de contar estórias sobre gente importante da política e da finança, até do eufemisticamente autointitulado “meio social”. Os que o ouviam sabiam que ele se movia em meios influentes. As estórias teriam sido segredadas por gente ainda mais influente, com que se cruzava no dia-a-dia. Os que o ouviam não tinham como saber se eram contadas todas as estórias, ou só as menos edificantes (porque as estórias se confinavam a apodrecimentos da alma), ou qual era o critério de seleção das estórias, caso não tivesse tempo para esgotar o manancial.
Os que o ouviam também não sabiam se ele era um fidedigno reprodutor das estórias, se decaía na mentira parcelar ou na intencional adulteração de fragmentos de informação, ou se reinventava as estórias – e se as reinventava, se era por convicção, para espalhar a confusão entre quem o ouvia, ou se a reinvenção era um território mal definido, sem fronteira, entre a mentira e a adulteração não intencional. Os que o ouviam tinham de considerar a hipótese do lapso comunicacional: a quem nunca aconteceu não conseguir reproduzir uma conversa em todos os seus elementos, por eles serem tantos que a memória cai na sua própria traição, ou por distração que, por se ter entremeado na estória, impediu a captura integral da estória?
Os que o ouviam, ouviam as estórias que ele contava. Notava-se uma certa soberba no contador das estórias. Era a sua forma de ostentar o acesso a informação privilegiada, pelo menos para os que o ouviam, que não tinham acesso as essas fontes. Às vezes, enxertava na conversa, quase a despropósito (mas só quase), uma frase que se repetia: “informação é poder”. Não era uma frase inocente. Os que o ouviam não queriam cometer o ato piedoso do chamamento à terra, termos em que, se o fizessem, teriam de completar aquela insistente proclamação com a seguinte frase contundente: “Falta saber o que se faz com a informação.”
Um dia, contou, em jeito de complexa teoria da conspiração, que o poderoso presidente do conselho de administração de uma das empresas mais influentes era testa-de-ferro do “lobby gay”. Nomeou outras pessoas que chegaram a importantes posições na finança e na política por serem agenciados por este lobby. Não disse nada sobre outros consabidos lobbies, dando a entender que o “lobby gay” não merecia amesendar na mesma mesa onde se esgrimem forças por um pedaço de influência. Aquilo soube a homofobia mal disfarçada. 
Um dos que o ouvia, cansado de tanta soberba e sem saber responder a todas as hipóteses antes enunciadas, pegou no telefone e discou o número da empresa liderada por aquela personalidade que, apesar de ser casado e pai de família, seria um testa-de-ferro do “lobby gay”. Passou algumas barreiras, mas não conseguiu convencer a secretária do poderoso homem a pô-lo à fala. Não capitulou. Conseguiu saber o correio eletrónico do senhor, com a ajuda de um amigo perito em vazar informação secreta. Enviou-lhe a seguinte mensagem:
“Caro Dr. (identidade ocultada por imperativos legais): 
Chegou ao meu conhecimento que V. Exa. ocupa o cargo que ocupa por intercedência de um grupo de pressão que pretende colocar homossexuais em lugares centrípetos da política e da finança. Não havendo, da minha parte, qualquer obstáculo a que uma empresa tão relevante para a economia nacional seja liderada por um homossexual, pretendia que me esclarecesse se esse é o caso. Só para poder acrescentar mais um grupo de pressão ao cardápio dos que se digladiam no exercício de influências nos meios da finança e da política. 
Atenciosamente, à sua consideração, o abaixo assinado, 
(Identidade ocultada por imperativos legais).”
A resposta nunca chegou. Contudo, não pôde inferir que quem cala consente. Disso informou o amigo que se ufanava das suas ligações ao jogo secular da informação usada como meio de (ostentar) poder. Aconselhou-o a ser crítico quando lhe contam estas estórias. A ter a iniciativa para apurar a veracidade das estórias, dentro do que seja possível. Para não ser um idiota útil que se presta ao papel de quem se limita a reproduzir estórias possivelmente fabricadas por gente inescrupulosa. Para não ser um entre os demais, nesta terra que parece feita de porteiras com botões de punho.

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