19.3.20

Da série “disparates a rodos” #1: O que diz a estética de Marcelo


In: negócios online, capa de 18.03.20
Petição de princípio: a estética é permeável à subjetividade. Não sou ninguém para contestar o axioma. Seria a falência da estética se alguém ousasse determinar a sua objetividade, contra os relâmpagos de relativismo que são a maior riqueza da estética. Dos meus padrões estéticos sou eu guardião. Único guardião. O resto, é direito à opinião. Criticável por ser isso mesmo, opinião.
Superado o introito, deito-me ao que interessa: uma imagem que é todo um programa. O mobiliário Luís XV, abundante no rococó que o enriquece sob o ponto de vista do artesão, mas o desvaloriza na grelha de análise da escola minimalista do mobiliário. O mobiliário Luís XV faz tandem com Marcelo. Aliás, Marcelo parece um corpo que se funde no mobiliário: a forma como repousa os pés rima com a curvatura kitsch da mesa onde (consta, por estes dias de pandemónio) sua excelência preparou a suspensão das liberdades fundamentais. Os pés da mesa desviam-se do chão, fletem numa convexidade que é, aos olhos de um exegeta da estética (este autor), motivo de desprazer. É como se a mesa tivesse medo do chão, o chão enquanto metáfora do mundo lá fora, e apenas pousasse a parte imprescindível dos pés para não ser matéria exposta ao abismo. E Marcelo, em pandã, replicando o mesmo estilo, sem o desconto da metáfora.
Talvez não seja por acaso. É o presidente de um país que, ao tê-lo eleito, ele próprio rima com quem o elegeu. E rima com o mobiliário que aparece, não inocentemente, como pano de fundo, ao qual também se empresta a sumptuosidade da parede de pedra com o detalhe dos motivos nela inscritos – uma reminiscência da grandeza de outrora, logo agora que, perante o pandemónio, e depois de um exílio que foi eufemismo de quarentena, sua excelência convoca o que considera o espírito superior e inigualável de uma portugalidade que só existe em Portugal. 
(Tomara! A portugalidade só existe no seu domínio natural.)
Marcelo é o pistache pátrio. Ainda usa fatos de trespasse e sapatos de fivela – e ninguém tem nada com isso, nem se espera que mude o dress code depois de instado, que vestir é o reflexo de um direito de personalidade. Sua excelência é o testa-de-ferro de um lugar onde o atavismo ainda é divisa celebrada. Onde a ousadia do diferente é deixada para os aberrantes, para os provocadores, ou para os párias. 
Eu gostava de ver se Marcelo tinha coragem de decretar o estado de emergência sentado numa mesa minimalista de um designer sueco, tendo como pano de fundo uma parede de estuque a disfarçar a esclerose de outras paredes que andam à mostra.

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