18.3.20

“Memórias de há atrasado” (redundância compulsória) #1: Espírito Santo & Comercial de Lisboa, ou a falência do divino


MGMT, “In the Afternoon”, in https://www.youtube.com/watch?v=ABtQrFn7zQs
Proposta de exegese das circunstâncias materiais que penhoravam uma parte das vidas: o Espírito Santo & Comercial de Lisboa era uma sucursal do omnipresente na terra, mais concretamente em Lisboa, outrora capital de um império agora reduzido a escombros. Salgado, também conhecido como o “dono disto tudo”, era Salgado na terra como embaixador da divindade que permanecia, observadora e atenta, e caução suprema, no céu. 
Corriam as coisas de feição, com o Espírito Santo & Comercial de Lisboa a dominar o segmento do mercado, e notáveis exemplos de negócio que serviam de paradigma. Eis que um dia despertamos para o contundente e inesperado golpe: o Espírito Santo & Comercial de Lisboa foi à falência, não adiantando as declarações de véspera do máximo magistrado da nação, o “maior economista português vivo”, de que estava tudo a correr nos eixos e os depositantes podiam estar sossegados.
Primeiro, ficou por provar a omnisciência da entidade divina que dava caução ao banco que era sua embaixada financeira no cosmos lusitano. Apesar de deus, o Espírito Santo & Comercial de Lisboa foi à falência. Provada ficou a ineficácia, porventura até a incapacidade, da proteção divina. Se nem os seus próprios representantes na Terra a entidade divina conseguiu eximir do colapso, o que se dirá do comum dos mortais se estiver à espera de uma mão conciliatória do além?
Segundo, até o Salgado, dignitário do divino em território pátrio, não se salvou. O todo-poderoso, imagem do divino na circunscrição territorial, entrou numa espiral de decadência que é sintomática de que deus não pode tudo – ou de que Salgado perdeu da franquia de deus na circunscrição territorial, possivelmente no rescaldo um qualquer episódio que ficará no segredo (dos deuses, como é de esperar), suficiente para a entidade divina ter retirado a confiança ao Salgado. Como é habitual nestes casos, um todo-poderoso que se desmorona afunda-se ainda mais porque todo um outrora séquito o abandona à sua sorte. Outra prova do mau fundo de uma horda de oportunistas, ou a prova de que nem neles deus terá conseguido imbuir uns valores decentes (que, julga-se, devem ser os valores divinos).
No acerto de contas, o Espírito Santo & Comercial de Lisboa, a embaixada do divino, foi extinto, o que ditou nova ida ao batismo. A evocação divina perdeu-se no rasto da memória, ganhando, em contrapartida, uma designação que apela ao neófito: na nova ida ao batistério, o banco passou a ser novo. Aterrou na terra, perdida a franquia divina. Dessacralizou-se. E o Salgado continua à espera da justiça dos homens, depois de ter sido sancionado ao abandono pela justiça divina.

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