13.3.20

O salto maior (short stories #201)


Ólafur Arnalds, “re:member”, in https://www.youtube.com/watch?v=oAhO5eegMfY
          A ponte ao longe parece um vulto, apenas. Uma imagem esbatida sobre as costas do nevoeiro, como se escondesse do olhar externo que a quer violentar. Mas o maior segredo é o que se abriga sob a ponte. A quimera que ela trouxe em garantia, prevenindo o salto possivelmente suicida sobre um rio indomável. Esse é o segredo que não se revela quando a ponte é contemplada à distância: um rio que esventra o desfiladeiro cujas margens ganham coesão através da ponte; e o salto impossível que seria cenário na sua ausência. A ponte é fiança do salto maior. Mas, mesmo ao longe, intui-se o desassossego que a ponte encobre. Um murmúrio gutural é o ruído de fundo, pressentindo o rio iracundo que penetra nas rochas alcantiladas que escoram as traves da ponte. Não se estuga, o passo; o corpo, preso a um paradoxo: quer apressar-se na direção da ponte, num frémito extasiante que responde à convocatória dos elementos agitados que são um pedaço furiosamente bucólico da paisagem; mas, ao mesmo tempo, sente-se estranhamente paralisado pelo eco constante, profundo, que pressente na voz tonitruante do rio. O salto maior é vencer a anorexia dos sentidos, sitiados pela paradoxal oposição de sentimentos. Triunfa a curiosidade da geografia. O apelo dos elementos que falam em favor da intratabilidade da natureza. De como ela é indomável. Um pouco à semelhança dos espíritos que se libertam das algemas que os tornam reféns de imperativos e dogmas e regras e estilos obrigatórios de convivência, o dito cimento da sociedade. Os redemoinhos desenham a linhagem do espírito insubmisso. Os olhos não podem desistir de ordenar o passo na direção da ponte. O salto maior é a harmonia com o rio desenfastiado que leva tudo à frente no caminho, menos a ponte solidamente ancorada que é porto seguro se um passo vital, aquele que separa as duas margens, for resolução.  

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