Working Men’s Club, “Bad Blood” (live), in https://www.youtube.com/watch?v=tIajFijrABs
Às vezes, tenho a impressão que as pessoas não dão valor às liberdades. Talvez por as liberdades serem um dado adquirido. Porventura por só as gerações mais velhas terem memória do tanto que foi preciso combater para as conquistar. Ou apenas (e este é um enorme apenas) por uma anestesia geral que contamina as pessoas. Há circunstâncias críticas na vida em que se jogam valores contraditórios. Situados perante a encruzilhada, temos de decidir. Ou aceitar a decisão dos poderes instituídos, quando a nossa autonomia cede perante a estultícia.
Em Itália, poucos deram crédito aos avisos das autoridades de que uma pandemia estava a um passo de distância. Poucos acreditaram que seria determinante mudar comportamentos para evitar a propagação da pandemia. Quando as consequências já eram catastróficas, as autoridades tiveram de exibir o músculo. Para os que criticam a demora do pulso forte das autoridades, o estado de exceção veio tarde. Agora, as pessoas, sitiadas em suas casas e obrigadas a alterar modos de vida, protestam contra o músculo forte do estado de exceção. Não percebem que nelas reside a motivação para o estado de exceção que as confinou às suas casas. Este é um breve retrato da Itália que está refém de um vírus. Espera-se que não seja o retrato de outros países; espera-se que tenham aprendido com a má lição italiana.
Por causa do estado de exceção, reapareceu Giorgio Agamben, o filósofo que é um dos mais importantes teorizadores do estado de exceção. Agamben explica que, muitas vezes, os governos se aproveitam do estado de exceção para suspenderem as garantias do sistema político. Insiste que há oportunismo político de governos, em países que se dizem democráticos, ao transfigurarem o estado de exceção num pretexto (e não num legítimo argumento) para cercear liberdades. É a lógica de meios e de fins, desta vez aceitando-se, em nome do estado de exceção, que os meios que de outro modo seriam ilegítimos (por serem contrários aos valores em que se filia a democracia) são uma necessidade para superar o estado de emergência em que a comunidade se encontra. Para Agamben, o risco do estado de exceção é fazer da normalidade constitucional uma exceção e transformar o estado de exceção na normalidade. Os poderes instituídos socorrem-se do vasto catálogo de circunstâncias que a modernidade é pródiga em oferecer como pretexto (ou legitimação, depende das perspetivas) para o estado de exceção.
Agamben, num texto recente, transpõe a teorização do estado de exceção para a situação atual em Itália. Acusa os poderes de abusarem do estado de exceção e de, em seu nome, terem inventado uma epidemia. É a partir daqui que vou por caminhos diferentes de Agamben. A menos que seja provado que o governo teria sido relapso nas medidas de contenção, não enviando sinais suficientes para os cidadãos alterarem comportamentos, dando azo à propagação da pandemia que ulteriormente motivou o endurecimento da quarentena, a posição do filósofo parece excessiva, assemelhando-se a teoria da conspiração.
O mal é que a estultícia das pessoas, ou o alheamento das notícias (que também é um eco de ignorância), percorre um caminho perverso e acaba por se jogar contra elas mesmas. Por cá, o primeiro dia estival foi aproveitado para uma multidão enxamear as praias da linha de Cascais. As pessoas não se podem queixar de falta de informação, nem dos exemplos (os bons, mas sobretudo os maus) que chegam de outros lugares. Quando a estultícia é puxada aos limites, até alguém que tem muitas reservas em aceitar o estado de exceção acaba por reconhecer que o estado de exceção pode ser inevitável. Pois as pessoas desaproveitam o conteúdo pedagógico das suas liberdades e, exagerando delas, legitimam o estado de exceção.
Por mais que custe reconhecer a alguém que tem muitas reservas em aceitar o estado de exceção, a imoderação e a ignorância de multidões poder ser a convocatória do estado de exceção.
(Ou, pela lógica de Agamben, poder-se-ia questionar se o Estado não é responsável por um estado geral de iliteracia informativa que acaba por fundamentar a estultícia dominante. Apesar de a escolaridade obrigatória ter aumentado, o que está em causa é a qualidade do ensino. Os números – a extensão do ensino obrigatório – não chegam; é preciso aumentar a qualidade do ensino. Esta é a falência dos poderes instituídos, responsáveis, por omissão, pela fraca cidadania que está na origem de um princípio geral de estultícia. Que depois, em situações limite, cauciona o estado de exceção através do qual os poderes mostram o músculo.)
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