11.3.20

Missas à distância e outras distopias


Grinderman, “No Pussy Blues” (live at Later on Jools Holland), in https://www.youtube.com/watch?v=Nxqlb1--uKc
Uma viagem ao futuro, quando o futuro é uma antecipação macerada por catástrofes e impedimentos do atual modo de vida, um pano dantesco que se abate sobre os olhares incrédulos. Como se fosse um filme apocalíptico que, vindo de um futuro desconhecido, faz uma incursão no tempo presente. À mercê de uma pandemia que parece instalar-se. 
Ato primeiro
         Já não há missas presenciais. Aos fiéis, foi dito para ficarem no reduto habitacional. Os que querem continuar a cumprir o dever litúrgico, que se liguem à internet. Sigam as instruções eclesiásticas: há ligações em direto a rituais transmitidos por via digital. À força da adaptação, alguns desafios que a consumam: a comunhão será virtual, com os fiéis a serem instruídos para pegarem num pedaço de pão quando chegar o momento em que o sacerdote os insta à comunhão. Pelo menos, enquanto houver pão. Os sacerdotes, esses, já não têm de fingir que não dão conta dos fiéis distraídos, que, assaltados por sabe-se lá que pensamentos interiores, não acompanham o ritual.
Ato segundo
         Cenário de pré-apocalipse: a pandemia perdeu as rédeas e as autoridades, elas próprias, estão em pânico; já não sabem como silenciar a doença. Já não chega a quarenta das famílias. Em cada casa, cada membro da família deve ficar isolado em seu compartimento. Só podem comunicar por telefone, ou por outros meios não presenciais. O sexo foi banido até comunicação em contrário. A menos que seja virtual, com a desvantagem de destruir várias fantasias individuais.
Ato terceiro (combinação dos dois atos anteriores)
         Os sacerdotes que, às escondias, rompiam o voto de celibato, estão a rebentar pelas costuras.
Ato quarto
         A cultura foi adiada. Já não há teatro, cinema, exposições, concertos, vernissages, hagiográficas apresentações de livros. Nem feiras de gastronomia, ou atividades desportivas. O Speakers’ Corner, no Hyde Park, foi cancelado (para gáudio de muitos filósofos). As efemérides, entre feriados nacionais e dias internacionais disto-e-daquilo, passaram a ser motivo de celebração coletiva sem que as pessoas saiam às ruas. 
Ato quinto
         As ruas estão desertas. Há semanas. Estranhamente desertas. É o que se consegue discernir ao espreitar através da janela. Não passa vivalma. Nem as patrulhas do exército que, nos primeiros dias da quarenta forçada, mantinham a ordem. Até os ladrões e os oportunistas deixaram de sair à rua. A pandemia conseguiu o que sucessivas levas de utópicos não alcançaram: uma igualdade sem precedentes. E até os defensores dos animais suspiram de alívio: nas ruas, os animais não humanos são as únicas almas vivas. A pandemia aniquilou o antropocentrismo.
Ato sexto
         Ninguém sabe o que virá a seguir. Por quanto tempo haverá quarentena. Nem os cientistas mais afamados, desorientados pelo malogro das suas previsões e pelo desmentido do conhecimento científico. Ninguém sabe quanto tempo mais as pessoas ficarão presas em suas casas. Ninguém sabe se a pandemia pode ser derrotada. E, não sendo derrotada, se o modo de vida tem de ser reescrito. Desfazendo os alicerces da socialização. Reinventando a humanidade. 
Ato sétimo
         Termos em que, proporiam alguns, a uma distopia não corresponderia o cenário desenhado. Antes, uma utopia seria.

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