25.3.20

Bandeira de xadrez


Cornershop, “St. Marie Under Canon”, in https://www.youtube.com/watch?v=MvdvaaEe7NE
Eram centauros arvorados em notários das vidas terrenas; um pesadelo, por certo, com as arestas queimadas pelas cinzas do caos, enquanto lá fora o caos era desmentido por sucessivos dias soalheiros que se embebiam nos rostos aclarados. 
Mas os centauros adejavam com a sua musculatura possante, as barbas hirsutas, os rostos medonhos, as vozes tonitruantes. Adejavam sobre os mortais e prometiam o delicodoce paraíso que cuidaria de os subtrair à vida terrena, o impiedoso percurso com o chão engastado de espinhos que ferem o corpo inteiro. Os incautos caíam no engodo, deixando-se caiar pelas pinceladas ardilosas dos centauros discretamente maniqueístas. Entretanto, os corpos sentiam-se atirados contra as paredes exíguas, desfazendo-se em parcelas sem identidade. Como ruído de fundo, um murmúrio ciciava, medonho; parecia uma trovoada encravada nos poros, espalhando uma energia paralisante para os corpos ficarem à mercê dos algozes.
Havia quem disfarçasse a perfídia. Fingiam cair no palavreado bem-falante dos centauros. Prometiam aderir às suas promessas quiméricas. Às escondias, conspiravam contra eles. Sabiam que não há virtudes sem preço por paga, e no prelo congeminavam a emboscada que não seria punida no tribunal dos costumes. Alguns dissidentes ousavam fazer de conta que eram porta-vozes dos centauros que conjuravam nos bastidores da fala. Devolviam-lhes o veneno que insinuavam entre os mortais cobertos de ingenuidade. Eram os mais corajosos e, todavia, entre eles encontravam-se os mais desencorajados, os que mais temiam a provação de uma luta física. Não omitiam a pujança dos centauros nem o mito da sua impossível derrota. Mas nem assim puseram os planos de molho. Não acreditavam em mitos.
A diferença fez-se na teimosia da vontade. Os ingénuos, caindo na malha dos centauros, sucumbiam à sua força bruta. Eram as suas vítimas preferidas, as mais fáceis de arregimentar para o património dos esquecidos. Seriam os primeiros a ver a bandeira de xadrez. Não seriam vitoriosos de coisa alguma. A menos que suplicassem pela morte, seriam os primeiros a vê-la – porventura, essa seria a vitória consequente à bandeira de xadrez. Os outros, impenitentes na resistência silenciosa aos centauros, esconjurando-os no boicote bem alinhavado, seriam os últimos a ver a bandeira de xadrez. Eles seriam os vencedores do pleito, a homenagem mais sentida ao valor da vida. Quando a bandeira de xadrez fosse mostrada ao último centauro em forma de adeus.
A vontade sem freio seria indicada como o móbil do triunfo sobre os centauros. Agora, os centauros estavam devolvidos ao espaço intransitivo onde vogam os pesadelos. 

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