5.3.20

Dou ao lugar a medula que há em mim (perímetro da identidade)


Idles, “Samaritans” (live at Later with Jools Holland), in https://www.youtube.com/watch?v=uXh8ae5RaA4
Desconsiderem-se as teorias que postulam a exsudação dos lugares na têmpera das pessoas. É esta a proposição dissidente: somos matéria embebida nos lugares que foram nosso património. Nós é que fazemos os lugares, primeiro. Só depois se pode aceitar que os lugares produzam alguma influência sobre nós.
Os lugares são as derramações das pessoas que os fizeram e das que os continuam a fazer. A sua geografia, dir-se-á, é inata, precede a influência das pessoas. O que se afirma é distinto: os lugares que aparecem transfigurados pela mão humana refletem essa mão. Não se fala apenas do património edificado e dos arranjos urbanísticos. Mencione-se a cultura que é marca identitária de um lugar, os seus hábitos e idiossincrasias, a gastronomia, outros arquétipos que distinguem um lugar de outros (a transfiguração do idioma, a música, a poesia, as festas locais, etc.). 
Não são as pessoas que trazem na medula um pedaço dos lugares com os quais firmam uma identidade. Os lugares é que aproveitam a levedura das pessoas que são o seu património indissipável. Os que esgrimem uma pertença incondicional dirão que, do âmago da sua generosidade, se entregam na totalidade ao lugar onde estão. Entregam-se, até à medula. Pressentem a reciprocidade: em consequência, reveem-se no lugar que os viu nascer ou que adotaram como lugar que recrutou a identidade sentimental. Sentem-se como uma extensão do lugar. Deveriam sentir o lugar como um prolongamento de si mesmos. 
Raros devem ser os casos em que se conduza um raciocínio coroado com esta ilação. A retórica dominante afirma os sítios como variável independente e os seus utentes como variável dependente. Os lugares é que produzem uma influência nas pessoas. Outra vez a discordância: nenhum lugar nasceu de geração espontânea. Os lugares habitados têm uma identidade que resulta da configuração outorgada pelos habitantes. Não há lugares sem previamente pessoas os terem colonizado, subtraindo-os à condição de lugar ermo e inabitado.
Esta é a relação causal, por dissidência do lugar-comum. Os que homenageiam as cidades a que dizem pertencer, não intuem como são eles próprios modestos contribuintes para a feição de um lugar. Preferem o outro sentido da causalidade, o que exibe a influência de um lugar sobre si mesmos. Esquecem que são eles, e foram os seus antepassados, a dar feição ao lugar.
(E depois há os que habitam um lugar e não se identificam com ele.)

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