12.3.20

O eleitor mais cortejado


Happy Mondays, “Kinky Afro”, in https://www.youtube.com/watch?v=O8maBsuhHr4
          Tinha o dom de adivinhar o vencedor das eleições. Senhor de uma veia competitiva singular, fazia campanha por quem acabava por triunfar nas eleições: adorava festejar a vitória em comandita com os que apoiara. Sempre foi assim desde as primeiras eleições, ainda mal tinha saído dos bueiros da adolescência. 
Havia quem o acusasse de incoerência. De vacilar entre os maiores concorrentes, ora um agora, ora o outro depois, e de novo o primeiro a seguir – e assim sucessivamente. Não se importava. Não sabia nada de ideologias. Fazia fé na advertência de uns comentadores de elevada autoridade intelectual (pelo menos, assim se exibiam em público): as ideologias deixaram de contar no momento da escolha de uma das propostas a eleição. Se gente com tanta craveira intelectual o garantia, quem era ele para os desmentir? Por isso, não se importava com os que acusavam de flutuar entre os maiores concorrentes nas urnas, como se adivinhasse o concorrente que ia levar de vencida a eleição e a ele se colasse para, no auge da sua incorrigível vontade de vencer tudo em que entrava, se considerar também um vencedor.
Sabedores de tudo isto, os concorrentes a eleições começaram a interiorizar um ritual obrigatório: tinham de convencer o homem predestinado a ser seu apoiante. Como se de uma superstição se tratasse e os concorrentes a eleições se empenhassem em cativar o apoio deste homem como caução da vitória eleitoral. Mas, afinal, tudo se passava ao contrário. O homem-talismã é que era apoiado pelo concorrente eleitoral que arrematasse o concurso. Começou a ser sondado com a promessa de generosas vantagens patrimoniais contra a concessão do seu apoio e da aparição em campanha.
O homem passou a ser o fuso das eleições. De véspera, com mais de um ano de antecedência das eleições, os concorrentes começavam o leilão pelo apoio do homem-fétiche. Sem darem conta, feridos por esta cegueira supersticiosa, os concorrentes a eleições entregavam-se nas mãos do homem que apostava sempre no concorrente vencedor. Era uma luta feroz, com sucessivas subidas de parada no leilão. E o homem, cada vez mais ufano, cada vez mais convencido dos seus dotes adivinhatórios, assistia na primeira fila, deleitado, e com os bolsos cada vez mais cheios.
Anos mais tarde, já quase às portas da morte (ele não conseguiu vencer a doença), um jornalista propôs recolher as suas memórias em livro. Impôs uma condição: o livro seria póstumo. Ficou-se a saber que o homem-talismã foi mentiroso pela vida fora. Nunca votou nos concorrentes a quem dera apoio. Limitara-se ao deleite de se saber a razão de tanta guerrilha entre os concorrentes. De se saber o eleitor mais cortejado. O fiel da balança eleitoral. Podia-se dizer, com toda a propriedade, ele decidira eleições.
Afinal – descobriu-se já tardiamente – as eleições dispensavam os atos supersticiosos.

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