10.3.20

O miradouro das enjoadinhas


Wilco, “Theologians”, in https://www.youtube.com/watch?v=el75UyYO554
A conversa não estava despachada; ainda havia muito por falar. Impunha-se uma interrupção, porém: as curvas da estrada terminavam num alto, onde o sossego de umas retas rompeu com a teimosa, sinuosa estrada. Estavam no sopé da montanha e ninguém garantia que, ao começar a descida até a um vale próximo, as curvas da estrada não voltassem a ser imperativas. Perguntavam-se: não havia engenheiros de estradas que soubessem cortar as curvas a eito? Perguntavam-se, fazendo de conta que não sabiam que o tempo é a caução da tecnologia que caminha célere, e que a tecnologia avançada ensina a romper os montes para prevenir estradas sinuosas. Faziam de conta que não sabiam que a engenharia era tosca quando a estrada foi desenhada.
O miradouro reclamava a atenção dos viajantes, nem que fosse para descansar de tantas curvas. Saíram do carro. Era um miradouro que ainda mostrava os vestígios da engenharia de estradas das décadas de antanho. A azulejaria reproduzia o grafismo dos anos cinquenta. A paisagem soberba, aos pés de quem a espreitasse através do miradouro, desviava as atenções. Ao início, ninguém queria saber da toponímia e da restante informação que se perpetuava nos azulejos que ornamentavam o miradouro. Só depois, após mais ou menos demorado êxtase pela paisagem esquadrinhada, se apreciava a sinalética do miradouro. Tinham parado no miradouro das enjoadinhas.
O nome era insólito, como acontece com abundante toponímia e os nomes dos lugares quando se viaja pelas entranhas do país. Jogaram com o nome do miradouro: o desafio era perceberem a etimologia do miradouro. Concordaram que não valia recorrer a uma mal-amanhada enciclopédia através dos olhos batoteiros se eles fossem perscrutar nos telemóveis. Fariam um exercício de adivinhação, sem que fosse adivinhação por simples adivinhação. A lógica seria a regra do jogo. Nem que descaíssem para a especulação.
Não chegaram a acordo. Ele sugeria que naquela terra as mulheres seriam desinteressantes, ao ponto de delas se dizer serem enjoadinhas, em tom depreciativo. Ela insurgiu-se contra este arremedo de masculinidade tóxica. A explicação teria de estar algures. Ele anuiu: a sua proposta estava contaminada pela masculinidade tóxica. Retratou-se. Sem conseguir arranjar teoria alternativa. Ela supôs que o subsolo daquelas terras estivesse contaminado por um minério com propriedades de toxicidade. Só as mulheres seriam afetadas – e não, não havia reconhecimento da superioridade masculina, era apenas a biologia a atirar-se contra as mulheres.
Não longe do miradouro das enjoadinhas havia um restaurante onde pararam para almoçar. No fim da refeição, ela perguntou ao dono do restaurante se sabia por que o miradouro tinha aquele nome. O dono do restaurante olhou-os como se fosse o mestre da escola a apreciar altivamente os alunos e perguntou se de onde vieram para ali chegar não era só curvas e contracurvas. 
Antes de ciciarem a resposta, o homem rematou: “eram muitas as mulheres que pediam para parar no sopé da montanha, enjoadas e com a precisão de bolçar.” “E os homens?”, perguntou ela. “Os homens sabiam dançar com as curvas e as contracurvas. Não veja isto, menina, com uma exibição de masculinidade tóxica. Era o que era.”

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