30.3.20

Os gatos dormem de mais


The Cure, “The Lovecats”, in https://www.youtube.com/watch?v=mcUza_wWCfA
Deviam pôr um parquímetro ou um instrumento métrico a preceito que estimasse as horas diárias que um gato dorme.
Não consegui perceber o interesse da demanda. Talvez para os cientistas que são peritos em felinos (felinólogos?) este seja um dado a reter nas suas análises da espécie. De outro modo, é uma distração do tempo para outras empreitadas virtuosas.
Insistiu:
Há de haver uma explicação para os gatos passarem tanto tempo a dormir.
Continuei a navegar no silêncio. Talvez percebesse que não queria ser embarcadiço no assunto e a ele não voltasse. Para mim, era um não assunto. Percebi alguma impaciência, pelo modo como trauteava o pé direito no chão, como se fosse um baterista a percutir furiosamente as batutas na pele endurada do instrumento e pelos suspiros denotativos de algum incómodo. Não dei o braço a torcer. Até quis desviar o assunto: 
Às vezes dou comigo a pensar sobre a imensidão que nos escapa, de como seremos sempre meãos diante tanto conhecimento que fica por explorar.
Sem saber, estava a dar o flanco, pois ripostou sem demora com uma pergunta em forma de emboscada: 
Lá está! Se tivéssemos as mesmas horas de sono dos gatos, onde arranjaríamos mais tempo para diminuir essa imensidão que nos separa de mais conhecimento?
Fui à janela, ver como estava o movimento na rua. Se ao menos entendesse que esse era o sinal comunicativo do desinteresse do assunto. Mas não desistiu: 
Se dormem tantas horas – li que dormem dezoito horas por dia – não me parece que os gatos sejam bichos de ter por casa. 
O cerco fechava-se sobre a paciência. Sabia que tenho muitos gatos em casa e que, muito provavelmente, acusaria o toque ao ouvir o remoque que acabara de estatuir. Neste dia, devia ter tomado uma dose reforçada de estoicismo ao pequeno-almoço, pois nem assim retorqui. A sua crescente impaciência era um deleite que me apascentava a paciência. Comecei a ter prazer no prato envenenado que pretendia servir-me: a emboscada estava a atropelar o seu fautor. E eu, discretamente e em silêncio, mantinha um sorriso do tamanho do mundo.
A páginas tantas, disparou com voz iracunda:
Se ao menos os cientistas apurassem os motivos de os gatos dormirem tanto. Aposto que chegariam à conclusão de que dormem na proporção inversa do sono dos seus donos.
Tendo, afinal, a paciência os seus limiares, não deixei sem resposta:
Se andasses ao corrente dos tempos, saberias que não se diz “donos”, diz-se “tutores”. Quanto ao demais, concordo contigo: invejo os gatos por tanto dormirem, pois quanto mais vivem encasulados no sono, menos é o tempo que estão atentos ao asnear que é timbre deste mundo.

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