23.3.20

Poço dos viúvos (short stories #203)


Porridge Radio, “Lilac”, in https://www.youtube.com/watch?v=U3BrQzmBF1w
          Tagarela, a tarde que se arrasta com a lentidão dos corpos velhos. Um idioma esquecido, talvez, transborda das paredes encardidas do poço. Os homens, todos viúvos, encostam-se ao amurado circular que delimita o poço. Não espreitam para o fundo: não teria serventia, só conseguiriam aprovar as trevas que se fundem com o fundo do poço. Esquecem-se do que foram antes de serem viúvos. Parecem aturdidos pela luz descendente, as mãos timidamente embaciando o olhar contra os raios já irrisórios. Um deles diz: “se soubesse que a falésia do tempo tinha estes preparos ter-me-ia conservado no púlpito da esperança, como se fosse um plebeu nupcial em vésperas de ser esposado. Não tinha saído da fortaleza onde meus olhos eram vívidos”. Ninguém quis saber. Estavam todos ensimesmados, os braços caídos sobre a raiz da madurez, como se houvessem capitulado à angústia sem remédio. Seguiam os seus monólogos de pensamento. Outro homem rompeu o silêncio: “Não sei de outras artes, que julgo tudo ter esquecido. Conservo nas mãos, contudo, uma certa aragem que evoca os lugares que eram tribunas da fortuna da alma. Ao menos, conservo essas memórias.” O entardecer não ficou à espera. E os viúvos continuavam junto ao poço, à espera que uma quimera os quisesse por consortes. Não se olhavam entre si; dir-se-ia que não saberiam desenhar os rostos dos outros, caso tivessem nascido para as artes. Já sob o desmaiar da derradeira luz diurna, outro viúvo não pediu licença para um estado de alma passado à voz: “Já fiz as minhas arrumações. Não espero por nada. E sinto que o tempo me agride a cada dia que me obriga a ser sua testemunha. Não, deus está longe de existir. De outro modo, não estava nesta consumição, a alma errando nos interstícios da finitude.” Foram embora, sem se despedirem. Era a sua particular convenção: não diziam adeus com medo que fosse tomado à letra. Adiavam-se, reféns das suas contradições. 

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