20.5.20

A ardósia democrática (onde todos podiam publicar) (short stories #216)


Happy Mondays, “Step On”, in https://www.youtube.com/watch?v=mFBQ0PH5rM4
          Não se sabia de quem tinha sido a ideia. A ardósia foi fixada junto à arvore centenária do jardim. Sobre o parapeito, o giz necessário. As pessoas podiam escrever o que quisessem, sem marcação prévia. Não havia regras, a não ser: ninguém podia passar à frente de quem estivesse em espera; ninguém podia tirar o giz a quem o estivesse a usar; ninguém podia apagar uma frase acabada de escrever; ninguém podia rasurar uma frase. Ao início, as pessoas estavam hesitantes. Olhavam para a ardósia vazia, como se a sua epiderme escura fosse um silêncio pesado a abater-se. Outras passavam pela ardósia com indiferença. Talvez não gostassem de escrever. Talvez reservassem para meios impublicáveis a forma dos seus pensamentos. Alguém inaugurou a ardósia: “Pela manhã, antecipo-me à prodigalidade de um dia que adestro para a grandeza.” Logo abaixo, alguém confessou: “A mortificação do medo é uma razão.” Ao fim do dia, depois de algumas frases já apagadas para darem lugar a novas proclamações, alguém quis desvalorizar a ardósia democrática: “A liberdade de pensar e de escrever está na medida inversamente proporcional ao calibre do pensado e do escrito.” E, todavia, a ardósia continuava aberta aos contributos dos passeantes. Não interessava aferir a linhagem das palavras desenhadas. Intua-se a intenção dos promotores da ardósia (que continuavam anónimos): levantar a pesada cortina que silencia a palavra das pessoas sem nome. Era uma versão modificada do Speakers Corner, em Londres – alguém propôs, observando a mancha carregada de giz que furtava a escuridão à epiderme da ardósia. Um dia, um famoso escritor tomou o giz entre os dedos e fez menção de imortalizar (na medida da efemeridade da ardósia) a fala que enxameava o pensamento. Deteve-se longos minutos à frente da ardósia, enquanto um punhado de pessoas esperava por vez. Esmagado pela ardósia prolixa, sentiu-se cercado pela impotência da palavra. Silêncio, foi tudo o que conseguiu verter para a ardósia. Limitou-se a escrever um ponto final.

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