7.5.20

“Noves fora nada” (short stories #213)


Ólafur Arnalds, “ypsilon” (Live in Leicester), in https://www.youtube.com/watch?v=lECcf7478Kw
          Guardo as lágrimas da neve quando se derrete à mercê do degelo. As pessoas vão metidas em seus sobretudos, mostram um esgar de desprazer contra o frio glacial. Guardo as cicatrizes que foram mapa na minha pele. Verto as cinzas de um vulcão hibernado. Verto-as, como quem despeja as suas próprias cinzas no imenso cemitério que é o mar. As cinzas aliviam as cicatrizes que abraseiam. O sangue em polvorosa ascende pelos tuneis de que são feitas as veias. Se havia um torpor, foi sepultado. Espreito pela larga avenida que desce em direção ao rio. Alguns carros desafiam a invernia. Não se intimidam com a neve despojada. Há mais carros do que pessoas. Desço a avenida. Desembainho a espada da teimosia para afrontar o vento que parece situar-me no polo norte. Antes fosse noite, para não saber das feridas abertas. Antes fosse noite, para ser só eu o procurador do vento que cicia no palco da solidão. Vejo nas árvores a personalidade da invernia: gotículas de gelo espessas, pairando na desembocadura dos galhos, desafiam a gravidade. E por que não hei de ser mais tonitruante do que vento glaciar que corta a carne até ao osso? Insisto: vou atravessar a avenida toda, sem hesitações ou adiamentos. Quero ver de que é feito o rio quando o inverno toma conta dele. Não quero saber das lágrimas retesadas das árvores, do punhal caldeado com o vento que enfraquece o sangue tresmalhado. Serei testemunha de mim mesmo. À espera que o entardecer não se demova. Se ainda conservar forças ao chegar ao rio, avançarei para o caudal gelado e, com as mãos descarnadas, farei a prova dos nove no chão gelado. Na manhã seguinte, a tatuagem do caudal estará no mesmo sítio, insensível ao vento que despenteia o gelo sem hipotecar a prova dos nove. E exclamarei, a plenos pulmões, antes de subir a avenida: “noves fora nada!”

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