25.5.20

Sobre a função biliar e as armadilhas não anunciadas


Idles, “Mr. Motivator”, in https://www.youtube.com/watch?v=YNCopmqsw1Q
Alguém pergunta: não te incomodam as injustiças perpetradas ao arrepio do mínimo de humanidade? Respondo, quase sem pensar: não. Não sou o fautor dessas injustiças e delas não sou presa, intencional ou não. Não posso aplacar as dores sentidas pelos destinatários dessas injustiças. Não as sinto, são intransmissíveis.
Segue-se outra interrogação: e não te move um mínimo de compaixão, um dever geral de solidariedade pelas vítimas dessas injustiças, atrozes ou não? Não se demora a resposta: também não. O palco sórdido que pisamos não tolera lirismos que enfeitam a boa consciência quando ela se limita a pacificar demónios interiores, ou quando se projeta no exterior como um feixe de luzes vazias. Não posso fingir o que não sou. Acusem-me de insensibilidade, de um tremendo egoísmo, de misantropia. É o que aprendi a ser. Vejo que o são quase todos no labirinto monolítico que nos aprisiona à existência possível.
As interrogações não cessam: não te incomoda que te considerem um pária? Do manual dos interiores procedimentos emergiu resposta célere: não. Se não somos todos párias, a estatística não anda longe de o atestar. Esta armadura que vestimos é-nos industriada pela aprendizagem com os outros, com aquilo que tu consagras encomiasticamente como a “convivência social”. É o que nos corrompe. O dominó a que nenhum de nós pode escapar. Por imperativo da armadura, repousamos num princípio geral de desconfiança que dorme lado a lado com o princípio geral da indiferença.
Sem se deter, o interlocutor protesta, desde o reduto onde medra a ingenuidade, denunciando os maus profetas que são o enxame dominante. Estiliza um raciocínio impecável, a pureza em todas as suas formas, desenhando com as sílabas uma utopia que os olhos tratam de desmentir. É a minha vez de retorquir: não te convenço a deixares de lado a maçaneta da ingenuidade, se é agarrado a este preceito que intuis o teu devir. Possivelmente não podemos fazer nada quanto às divergências. E eu digo: ainda bem. Seria soez qualquer tentativa de um de nós convencer o outro a ser diferente. 
Os matizes do mundo, é como são. A impressão de decadência permanente a sobrepor-se a um artificial progresso. Os manuais de instruções educam princípios inatingíveis, porque esbarram nas formulações da pragmática. O único peso da consciência: nenhum de nós se habilita a ser ator de uma metamorfose. De uma metamorfose que nem sequer estamos convencidos de ser desejada. Os olhares não se decantam pela hagiografia do mundo, que não existe.

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