12.5.20

Porto de águas fundas


Fontaines D.C., “A Hero’s Death”, in https://www.youtube.com/watch?v=jLNt8aMNbvY
Mudança de território. O palco estava gasto. As vozes interiores não cessavam de murmurar a craveira do exílio – se a exílio se podia chamar o vinco nómada que coloria a pele exangue.
Sentia um tremendo lastro, como se fossem os seus pertences imateriais. Pela primeira vez. Ao início, não sabia encontrar a origem. Se bem se lembrava, não estava habituado a de si ter uma imagem prodigiosa, bem pelo contrário. Desta vez, as suturas saíam do avesso. Sentia que carregava séculos às costas. Era um porto de águas fundas, onde tinham cabimento os navios de largo porte. Já não se intimidava com as demandas incomuns que eram alvorada frequente. Esse era o seu traço próprio, a cor de uma identidade singular.
Porto de águas fundas, sim: as dragagens de outrora deram corpo à fundura e os navios de grande calado podiam ter repouso entre duas navegações. Tão porto de águas fundas que mesmo nos dias de tempestade o mar continuava subordinado, uma horizontalidade que era antítese do tumulto medonho das ondas sobrepostas que se aplacavam no paredão-muralha. Sentia-se porto de águas fundas, casa de repouso para os que andassem errantes na demanda de um lugar. 
 E ele, encimando o miradouro sobranceiro, media o corpo da tempestade e do seu lugar capitão protegia a cidadela limítrofe. Nunca procurou ser juiz em causa alheia. Nunca soube ter estatura para albergar em seu domínio uma multidão (significado de acima de três). Este era o epílogo do encadeamento de sonhos. Era como se os sonhos fossem diferentes capítulos de um livro e tivessem sequência, sonho após sonho, meticulosamente. Limitar-se-ia a ser intérprete dos sonhos, dando-lhes abrigo com as mãos operárias. Não podia recusar o encargo. 
Nem assim convocou estatuto superior. Sentia que o sublime exigia a moderação. Não tinha autorização para fermentar o deslumbramento. Era o contrário: o encargo era a cartografia de uma exigência acima da capacidade do simples mortal. Se desse conta do recado, se soubesse ser porto de águas fundas, seria o lugar de salvação de uns quantos naufrágios. Não era de somenos importância. Mas não era de importância que se tratava. Nem de exaltar a utilidade à marinha mercante. Modestamente, limitava-se a cumprir a demanda dos sonhos consecutivos. 
O encargo era estritamente interior. Por isso o aceitou. 

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