Tindersticks, “A Night In”, in https://www.youtube.com/watch?v=o_Y_c4f6WdE
A atalaia servia-se em fatias de generoso bolo marmoreado. Não era menor, a incumbência: do lugar cimeiro, em pose sobranceira sobre os demais, cumpriria a demanda da verificação dos costumes. Os tempos árduos pareciam ter desatado a loucura e havia cada vez mais gente tresmalhada a viciar as regras do jogo. Os curadores do regime trataram de ceifar o mal pela raiz. Antes que se desse a razia dos cânones, era preciso cortar a eito no hedonismo irresponsável.
Ele fora nomeado para a função. Avisaram-no, antes de assinar o termo de responsabilidade, que não seria uma empreitada cómoda. O que não disseram foi o motivo certo da ingrata demanda. Quando esperava que o advertissem que não é fácil espiolhar a vida dos outros, foi-lhe explicado que a tarefa é ingrata porque era preciso estar sessenta segundos por minuto atento aos cada vez mais numerosos que faziam tábua-rasa das convenções. E as convenções não admitiam desvios. Não seria tolerada qualquer transigência. Os mandantes depositavam confiança na sua capacidade inspetiva.
No mais alto miradouro, com acesso à imagem de todos os coabitantes, era como se fosse o imperador máximo. Mais imperador do que os mandantes de que era procurador. Estava inebriado. A atalaia indiscriminada fizera dele o mais poderoso. Tinha de começar a função com intransigência. Não haveria comiseração por atos tresloucados que fossem invocados como reação desabrida às erróneas circunstâncias que sobressaltam o lugar. Não haveria contemporização com o menor desvio. Dele se esperava que fosse tutor dos comportamentos irrepreensíveis. Teria de atacar ferozmente os que perturbassem o código de conduta.
Uma noite, ao chegar a casa depois de uma jornada em que cominou um número recorde de infratores, ficou embaraçado com a heresia da consorte. Assistia a um “filme com cenas que perscrutavam a intimidade” – seria o eufemismo que empregaria para “filme pornográfico” caso estivesse a preencher o auto de condenação da consorte enquanto infratora. Indignada com o protesto audível do censor, ela lembrou que o sexo não estava proibido pelos costumes. Ao que ele retorquiu, “ainda não. Ainda não.”
Na noite seguinte, quando chegou de outra jornada extenuante, a casa estava sozinha. Um bilhete em cima da mesa da cozinha selava o adeus da consorte: “não consigo viver com o cúmplice da esterilização da sociedade.” Ele não perdeu o sono. Abraçara tão fortemente a missão que o resto era desimportante.
Havia quem lhe chamasse a mais insublime das cegueiras.
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