19.5.20

Princípio geral da precaução


Margaret Glaspy, “So Wrong It’s Right”, in https://www.youtube.com/watch?v=7rtqUUjxKJQ
(Um certo aroma do tempo)
Às piruetas, diremos o quê? Do ontem sobra a transpiração da distopia. O mundo ia acabar – e alguns profetas continuam a jurar que acabou, o mundo como o conhecíamos, pelo menos. Um leve alívio da procela é a tábua de salvação. A distopia foi anunciada antes do tempo. Temos autorização para respirar. A respiração a pulmões fartos, apanhando as porosidades todas que o ar fresco granjear. O ar dentro de casa estava mais saturado do que o sítio com a pior poluição atmosférica. Parece que as casas foram feitas para dormir, e pouco mais.
O princípio geral da precaução, ainda há pouco tempo tão glosado, está a caminho do olvido. Mas parece depressa de mais. Afinal, não somos aqueles dos brandos e moderados costumes. Somos paradigma dos excessos. Os últimos dias foram cobertos pela extravagância que percorre os rostos famintos por se verem desembaraçados de um teto. O tempo a favor, primaveril, ajudou à emancipação da hibernação forçada. Os intendentes convocam a “responsabilidade pessoal”. Não sabem – ou fingem que não sabem – que a “responsabilidade pessoal” não é critério. A “responsabilidade pessoal” é variável, pois as pessoas diferem muito umas das outras. 
Poderão os protetores de conspirativas teorias argumentar que é tática intencional dos intendentes. Se correr mal, a culpa terá sido dos reduzidos padrões de “responsabilidade pessoal”, usando-o como pretexto para aferrar a trela sobre os súbditos. Um sonho que se entreabriu, com visíveis manifestações, aos que detêm o poder e o confundem com ostentação de autoridade. Se correr bem, os intendentes hão de perfilar outra vez na passerelle onde se compara a diligência para domar o inimigo sem rosto. Os cidadãos serão aplaudidos e estes hão de aplaudir os mandantes pela manifestação de confiança. A teoria do milagre nacional será sublinhada até à exaustão, outra vez. Bendito inimigo sem rosto, o cimento da portugalidade resgatado à epiderme sombria do passado.
Parece que o princípio geral da precaução ainda não foi banido. As costuras da imagem cuidam do resto. Os que dão o rosto pelo poder instituído não se cansam de se exibir como exemplo. As pessoas têm de sair. Têm de começar a trabalhar. Têm de começar a ir a restaurantes. Têm de tomar o pequeno-almoço no café do costume. Os seus filhos têm de ir à escola. Tudo tem de funcionar, se não a fatura começa a ter um peso insuportável. 
Afinal, o princípio geral da precaução ainda tem microfone acessível. Em nome das minudências da governação, mais do que em homenagem a quem ainda pode falecer vítima do inimigo sem rosto.  

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