The Sound, “Skeletons” (live at Peel Sessions), in https://www.youtube.com/watch?v=OKdeLTRhjqA
Do miradouro mais alto da cidade. O rio encomenda a fertilidade às aluviões na outra margem. É um lugar insólito, esta cidade. Só escolheu uma margem, deixou a outra margem deserta. Dizem que a outra margem tem o chão mais fértil do país. As edificações sobre chão tão precioso seriam um crime sem perdão.
As luzes noturnas tremem com o ciciar do nevoeiro que se ergue desde o rio. Não se vê a outra margem. À noite, nunca se vê a outra margem. A planície onde só há campos de vegetais e de cereais estende-se como se o infinito existisse. Em dias de canícula, as pessoas juram que conseguem ver o fio do horizonte fundido nas espigas que esperam por um módico de vento. Vou ao mapa. As montanhas estão a mais de cem quilómetros em linha reta. Dizem os conhecedores que esta área pertence às culturas que nidificam na fertilidade singular dos solos. O “celeiro do país” – não se cansam de apregoar, orgulhosos, os habitantes da cidade.
Digo, em jeito de provocação: mas vocês pertencem a esta margem, não têm ligação com a outra margem. Continuo, em tom insolente: a outra margem é a outra margem. Um território estrangeiro dentro das fronteiras do país. Só a habitam os operários que cuidam das culturas. A outra margem está mais longe que as montanhas que distam cem quilómetros deste lado do rio. Não, o rio não une as duas margens, como se o rio não contasse e as duas margens se fundissem num chão único. A outra margem não é vossa pertença. São estrangeiros no campo de visão da outra margem.
Alguém contrapõe que um forasteiro não pode perjurar a boa hospedagem. A provocação encerra um ultraje, pois os habitantes são orgulhosos da cidade e consideram a outra margem o prolongamento da cidade. Orgulham-se: não há lugar outro no mundo em que a cidade esteja comarcada a uma margem. Lugar nenhum no mundo – repetem, sílaba a sílaba. As pessoas consideram a pertença à cidade e têm uma dedicação quase religiosa ao rio que foi pródigo com a outra margem. Um forasteiro não devia importunar a idiossincrasia do lugar que visita.
Pergunto se os habitantes da cidade não estão reféns de uma fantasia – a da outra margem como lugar prometido para remediar arrependimentos. Como se fosse um lugar de peregrinação, sem as pessoas saírem da cidade, bastando estenderem o olhar que se projeta sobre o estuário até aportar na outra margem. Um pouco como uma miragem ao alcance do olhar.
Fico sem resposta. Talvez esteja a ser petulante. Um demorado silêncio avança pelos olhares cautelares dos interlocutores, inertes no miradouro a contemplarem o palco a seus pés. Fiquei sem perceber se contemplavam o estuário, a sua forma original, como um trapézio diligentemente desenhado entre a embocadura da cidade e a planura da outra margem. Ou se dirigiam o olhar para a outra margem, descendo a um santuário onde nunca teriam ido.
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