21.5.20

Nortada


TV on the Radio (ft. David Bowie), “Province”, in https://www.youtube.com/watch?v=_whZTOiB5to
A pele não se faz ninho das intempéries. Esconde-se no refúgio de uma fazenda e os poros acalmam-se contra a advertência do vento. Diga-se que ninguém na posse de juízo se empresta a uma tempestade. Ninguém se devolve ao avesso da bonança sem que um tumulto interior o percorra. O vento não está para murmúrios. Encosta-se aos fartos decibéis e, baldio, vocifera a sua fúria sobre os lugares expostos. 
Pode-se dizer que estes lugares conservam as marcas do vento rebelde. Se não for o selo da destruição, será o odor indelével de um vento que em palavras traduz a maresia que cicia desde latitudes perdidas. As pessoas esboçam esgares de dissabor por causa da nortada que as agride nos rostos. Não se lembram da última tempestade, como a nortada é um pequeno artefacto que não rivaliza com os ventos que medonhamente açambarcaram a noite da última tempestade.
Há quem diga que a nortada inspira as ibéricas terras expostas ao mar atlântico com vestígios de civilizações viquingues. Não se diga que somos tão diferentes dos nórdicos, se ele é tanto o tempo de um calendário que estamos à mercê dos ventos que dimanam de nórdicas paragens. Nós, os que sabemos de cor as arestas da nortada, temos a pele endurecida pela sua aprendizagem ao penhor da nortada. Os mais rijos e que disso fazem gala, dizem que a rijeza é o fruto colhido da nortada. Ninguém os desconvença que não são dos mais preparados para deitar ferrolho aos contratempos.
Uma vez, um nórdico visitou uma terra consanguínea ao mar mediterrânico. Não se queria convencer que era um mar. Era um espelho inteiro até onde o olhar se abraçava. Chamou-lhe o lago mediterrânico. Um mar – contrapôs ao anfitrião que defendia a linhagem de mar para o mediterrânico – é um levantamento dos sentidos. Uma orquestra de vento que rumoreja em rima com as ondas desordeiras que se desfazem na orla imperturbável. Um mar não é domável. Agiganta-se sob a vigilância dos promontórios que mergulham em precipícios guturais sobre o mar que os recebe. 
Dias depois, o nórdico virou os azimutes do mapa peninsular. Levaram-no a almoçar a uma esplanada sobranceira à praia. Não podia estar em lugar mais deleitoso. Já se notava a nortada que expira a manhã. O mar não era a submissa amostra que lhe fora dado a conhecer dias antes. Reconheceu o sabor do vento: “este é o sal que sela a minha terra”, lembrou, ao sentir as lágrimas depositadas na nortada por sua vez despojada na pele que trazia à mostra. 

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