11.5.20

Tridente


Einstürzende Neubauten, “Alles in Allem”, in https://www.youtube.com/watch?v=0Nz9t_4XLcc
Um quarto de hotel é apenas um quarto de hotel. Não era cunhada tanta indiferença desde que alguém se insurgiu contra a irrelevância a que fora destinado depois de uma aparição catastrófica na televisão. Como as pessoas gostam de visibilidade. De popularidade. Que doença pueril! 
Lá fora, um trabalhador rural adestra as terras. Saberá da febre que se insinua no complexo labirinto em que a cidade se tece? Saberá dos votos promíscuos que se exibem à noite, os corpos não passando de uma procuração de personagens esvaziadas? O homem colhe as laranjas gordas que, não tarda, apodrecem agarradas aos ramos. Imerso na sua lhaneza, os dedos adivinham quando a decadência se inscreve nas páginas do tempo. Não se dirá o mesmo dos espasmódicos vultos que se esgueiram entre as sombras da noite, penhores de um hedonismo reprovável para os ascetas da boa moral. Se perguntasse ao trabalhador rural, saberia distinguir a boa moral da má moral? Não diria, apascentando a simplicidade, que a moral é um farol de cada um? 
Não convencido, insisto nas comparações desassisadas: à hora que o agricultor se levanta, há muitos boémios que vão a meio da noite. E sei que se perguntasse ao homem ele encolheria os ombros, indiferente à consumição da demanda. Diria que só dorme o seu sono e que o sono dos outros não o sobressalta. Sem paciência para a densidade das demandas (ou para a sua irrelevância), o homem virava as costas, que tinha empreitadas mais importantes para cuidar. E seguia até às próximas árvores de fruto, não desdizendo a vida singela que era a sua.
No rio passa um barco imponente. No convés, três raparigas em fato-de-banho ostentam-se ao sol pródigo. Um homem grisalho assoma à superfície, espreita pela escotilha. Balbucia algo e as raparigas não respondem. O marinheiro vira o leme e inverte a rota. Fica parado por uns momentos na confluência do rio menor com o rio protagonista. Encara o agricultor na sua faina. O homem curvado sobre a enxada, preparando o chão para a fertilidade. Deixa escapar um lamento, o marinheiro grisalho. A abastança não é notária da juventude que outrora teve o seu lugar. As raparigas em trajes menores não lhe dão atenção. Não será por acaso. O marinheiro deita-se num jogo de adivinhas. Acerta com os interiores corredores do pensamento que o agricultor é homem possante, apesar das cicatrizes da faina tão dura que leva, escritas indelevelmente nas mãos e no rosto. Não há dinheiro que consiga pagar as veleidades perdidas. Para a próxima – jurou o marinheiro apoderado pela nostalgia – navegará sem companhia, já que esta companhia não lhe faz companhia.
E o trabalhador rural prosseguia a jornada, indiferente ao demais. Sem se saber protagonista da atenção de outros.

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