28.5.20

Bola de neve


Joy Division, “Dead Souls”, in https://www.youtube.com/watch?v=kTdFsXc7zFg
Não servia, a escada. Por mais que a voz arranhasse os portões do tempo, nada acontecia. A indiferença batia no umbral da voz. Do verbo não sobrava a pele. Podia ser que a memória ajudasse. Um mergulho no pretérito seria a reivindicação da pureza que sabia ser demanda impossível. Mas nunca houve condenação de alguém por tentar o impossível. 
Às vezes, olhava à distância para a paisagem e sentia que se estivesse no sítio observado não faria parte dele. As bainhas que me delimitam são porosas. Vão e vêm no equilíbrio instável de um malabarista. Não digo que seja eu próprio malabar nas empreitadas que meto a peito. Exsudo a lava acumulada durante anos de calmaria, que por vezes mais parece o tempo ungido por um fingimento irrecusável. Fazer de conta que não se é importunado pelas coisas que estorvam pode não ser um estado de alma aconselhável. Não é por contornarmos as coisas espúrias que elas deixam de existir. 
Às minhas mãos vem o cimento da pertença. Contudo, continuo a não ter uma noção clara da pertença. Sei que jogo com a argamassa, estilizo-a em estatuária ser ter noção das figuras de que sou artesão. A maioria tem uma fala que parece inteligível. Talvez a minha fala não seja. E, por maior que seja o esforço meu, não consigo pertencer à pertença afivelada pela maioria – nem a minha semântica se aloja no inventário acessível. Parece que nasci para a dissidência. Procuro saber porquê. Ando às voltas há anos inteiros e ainda não consegui saber do paradeiro da resposta. Já me convenci que não há resposta por encontrar. Já me convenci que a ausência de linhagem não é um contratempo. É a minha pertença. Por exclusão de partes, a pertença a lado nenhum.
Pode ser que um dia me depare com uma bola de neve em plena descensão. E, com a bola de neve no meu caminho, consiga erguer as duas mãos e reverter o seu curso. Pois ninguém é penhor na minha vez. Não espero por alfaias alheias para industriar o plano imperfeito. É tudo o que desejo: um plano e, de preferência, imperfeito. Pois a perfeição é uma praga sem remédio.

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